[ELA - Agosto Lilás]

[Agosto lilás]
[Esse é um texto dolorido demais]
[Leia ouvindo "Mulher do Fim do Mundo" - Elza Soares]

     Eu a ouvi. A ouvi gritar todas as noites daquela semana. Sentei no chão do meu quarto encolhida num canto esperando ela se calar. Pedindo a Deus para acabar logo com o sofrimento dela. Ele costumava atender ao meu pedido depois de mais cinco ou dez minutos daquilo. Com o que ela estava apanhando? Não sei dizer. Eu não ousaria chamar a polícia. Ah não. Já dizia o povo mais velho: "Briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. 
      Talvez eu devesse ter metido a colher, o garfo e a faca também. Talvez eu devesse tê-la dado um teto e oferecido o braço. Ainda tem um cheiro podre no ar. Um cheiro de assolação. Um cheiro de desgosto, ódio, culpa e sangue. Eu sinto meu útero se rasgando junto com meu coração. O coração da minha irmã parou de bater. A minha irmã de espirito que carregava as mesmas cicatrizes de um passado mulherístico. A irmã que sabia o que era levar tapas na cara e cuspir sangue. A vida não tem sido boa, meu bem. 
     Ela tinha filhos. Dois. Uma linda menininha de nove anos e um rapazinho esperto de seis. Geralmente as propagandas que o governo faz sobre a violência doméstica é considerada um tanto quanto "apelativa" por falar como a família sofre ao ver uma mulher violada. Preste atenção - A família sofre. Não a mulher. Ah não. A vagabunda dava motivos para ele, apanhava e a família era obrigada a assistir? Ninguém mandou ela queimar o feijão naquele dia. A saia dela vivia um palmo acima do joelho e ela ainda tinha audácia de andar sozinha na rua. Ah não, marido nenhum merece uma Amélia dessas defeituosa. 
     Ele chegou bêbado na segunda. Eu ouvi. Ela estava na minha casa, havia levado um pedaço de bolo para mim. "Fiz para as crianças e lembrei que você adora bolo de laranja", ela sorriu. Ela estava ali. Na porta do meu apartamento a cinco passos de distancia de se eu soubesse eu a teria segurado por mais um tempo. Teria dado forças a ela. Teria dado minhas lágrimas, meu sangue e mostrado o 180 na tela do celular. Ele começou murmurando um ou dois palavrões na porta da casa dela. Ela empalideceu na minha frente e correu para levar o desgraçado para dentro do apartamento. Depois disso, Gritos. Gritos. Gritos. Gritos. Não consegui dormir. 
      Na terça a filha dela havia machucado o braço brincando na rua. Óbvio que sobrou para ela. O que a vagabunda estava fazendo que não vigiou a filha. Aliás o que uma menina daquela idade queria na rua? Virar uma vadiazinha igual a mãe? Choro. Grito. Grito. Grito. 
       Na quarta ele cismou que ela tinha outro. Ah sim. Ela não o enganava com aquela pose toda de dama bela, recatada e do lar. Ele a viu dando mole para o dono da padaria, o seu Joaquim. Isso certamente era influência daquela vizinha. Ela devia parar de andar na casa daquela mulherzinha esquisita. Choro. Grito. Choro. Grito. Tive pesadelos. 
        Na quinta ela o desacatou. A roupa muito escandalosa. Ela o fez passar vergonha. Onde já se viu mulher andar daquele jeito? Ela me pediu para cuidar das crianças naquela noite. Mas nem os desenhos animados que eu coloquei para eles assistirem abafou o horror daquela noite. Choro. Choro. Choro. Choro. Um olho roxo. Uma boca sangrando. Eu não segurei as lágrimas. As crianças também não. 
             Na meia noite de sexta, ela descansou.
               




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