[Na Pele]

         
[Leia ouvindo "Na Pele" - Elza Soares]
[“Minha vida tornou-se mais ocupada, e a realidade substituiu a ficção." - Mary Shelley]
[É um texto cheio de ruína, putrificina e caos. Não há nada de bonito para se ler aqui]

              Cresci com as metáforas que ouvi nos livros. As que chamavam poetas de menorme e faziam comparações entre humanos e formigas. Cresci olhando, pelo caleidoscópio, um mundo idealizado e mais colorido, feito de vitrais e miçangas. Não deve fazer sentido para você como faz para mim, crescer assim, o peito meio aberto com todas - todas - as vísceras a mostra. Com pus e sangue gotejando. Eu cresci construída pelo Frankstein: Um monstro-anjo-caído todo remendado, eletrocutado. Ele me moldou às pressas, costurando um que de Clarice, com um gosto estranho por poetas suicidas: uma voz de Anne Sexton e a boca de Sylvia Plath. Ele me deu as pernas de Drummond e me eletrocutou. Ele me deu a ancia de Augusto dos Anjos e colou em mim as mãos das Brontë. Ele cobriu as minhas vísceras com a pele de Rilke. Eu fui sendo coletada. Um coração ali, uma poesia aqui. Fui sendo reconstruída pedaço a pedaço.
                 Me contemple. Contemple as minhas íris cheias de furor e confusão. Contemple os passos em falso e as palavras mal escritas. Contemple o demônio, o Adão (Eva), olha bem na minha cara e contemple o meu âmago que insiste em vomitar fórmulas prontas e engolir antidepressivos. Me contempla olhando no fundo das minhas pupilas me dizendo que como um anjo caído eu decepcionei o meu criador e cada retalho que forma meu corpo monstruoso. Me diz que as cores em preto e branco que ganham proporções fílmicas em meus sonhos diários são na verdade uma sombra do que poderia ser. Uma grande piada de mau gosto onde eu vou perdendo os meus pedaços e me perdendo por aí. 
               Eu queria que você visse meus reinados de humanidade e amor e decepção. O caos que eu criei. A solidão que eu formei. Tudo obra minha. De ruína em ruína, de caos em caos, como um defunto entregue aos vermes, era eu entregue aos meus sentimentos. Meu Deus, eu nunca me senti tão miseravelmente só como eu me sinto agora. E eu queria dar glória aos céus por ter me feito humana, no entanto os retalhos que me remontam, me trazem de volta para cá. O caos das vozes que gritam no meu ouvido palavras não tão gentis assim. Só me fazem blasfemar contra o meu Criador. Deus! Eu entendo a criatura. Por que me criaste? Para desistir? Eu era a tua Eva - quase Lilith, obra prima da tua criação. Queria criar um anjo perfeito. No entanto, eu apareci. Uma humana cheia de calamidade, sentimento, ruína e amor. E as vezes, quando eu vou dormir, rezo pelos anjos caídos que tentam me embalar. Nós, criaturas, de naturezas tão decadentes e inválidas, procurando um sorriso amistoso e um pouco de compaixão pelos quatro cantos do mundo. 

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