[O Jogo]

[Leia ouvindo "Uma Atriz" - A Banda Mais Bonita Da Cidade]
["A adolescência nunca morre, somos sempre urgentes quando amamos - percorremos a ansiedade como um mapa de perigos. Há um adulto a menos sempre que há um apaixonado a mais" - Pedro Chagas Freitas]
[Eu sei que não tem um pingo de sentido]

Lee Price



                   Eu acordei enjoada, atordoada, atormentada. Os sons que vinham da rua pareciam tilintar dentro da minha cabeça: como ela latejava. Eu respirei fundo algumas vezes e pensei em como havia dormido naquela noite. Pensei em cefaleia, sinusite, TPM, tensão. Pensei em AVC, aneurisma e lembrei da matéria que eu li no dia anterior, onde dizia que os brasileiros podiam ter 29% de chances de ter câncer. Sim, minha hipocondria acrescentou o câncer na equação. Tomei uma aspirina e lembrei das contraindicações em caso de dengue. Dor de cabeça era um dos sintomas, certo? Eu poderia estar com dengue? Mamãe sempre me disse que eu era "uma criaturinha dramática".
                     Comecei a fazer contas na minha cabeça. Quando eu tinha oito anos eu não queria andar na minha bicicleta porque sabia da possibilidade de cair e quebrar o braço. Mas papai me disse que era o jogo. Algumas vezes vamos pedalar a mil por hora e vai parecer que estamos flutuando. Outras vamos cair e quebrar o braço, a perna ou só vamos conseguir alguns arranhados - pontos no joelho, no máximo. Naquele dia, eu pedalei o mais rápido que pude e flutuei pelo ar. Antes de cair e perder o dente de leite da frente, eu voei. Meu pai me disse enquanto estávamos no hospital para que eu levasse quatro pontos no queixo: "Antes de se estabacar, minha filha, a gente tem que voar". E eu achei divertido apesar de estar sentindo dor. Eu não quebrara o braço no final das contas.
                       A dor de cabeça não cedeu pela manhã inteira e eu pensei em novas possibilidades. E eu pensei nas novas probabilidades: estava preocupada, triste, cansada, apaixonada, magoada, de ressaca? Deve ser isso. E eu pensei nos encontros que eu vou ter. Nos dentes que eu vou quebrar. Nos amores que eu vou frustrar e nas trinta e duas mil pessoas que eu vou magoar. Eu sempre fui hipocondríaca com os meus sentimentos também. A voz do meu pai estava alta e clara na minha cabeça novamente: "Este é o jogo. Vamos amar algumas pessoas. Algumas vezes vai dar certo e outras não. Perder e ganhar e perder de novo. É o jogo. Você tem que jogar."
                  Passei um café forte e deixei o cheiro acalmar o coração. A dor de cabeça se tornou secundária. Fosse o que fosse, passasse ou não passasse, era um jogo. Não sei ainda se vou ter muitas vitórias. Mas eu prometo perder algumas vezes só para manter as coisas interessantes. 

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