[Umbrais]

[Leia ouvindo "you and me" - Feldberg]
[Eu sinto sua falta e acho que o texto é sobre isso]

                 

               Quando eu me estiquei sobre minha cama, sendo aquecida por raios laranja do sol que insistiam em invadir minha janela, eu olhei para ele. O cara moreno de ombros e sorriso largos que virou meu colega de quarto e de vida depois de todos esses anos. Ele está deitado de barriga para cima, o umbigo sorrindo para o teto e os olhos perfeitamente fechados mostrando suas pálpebras claras sobre olheiras escuras - Ele tem trabalhado até tarde esses dias. E quando ele entrou na minha vida, já era assim, um cara totalmente noturno que voltava do trabalho lá pelas duas, três horas da manhã pisando baixo para não me acordar. Começamos a compartilhar a paz e os sonhos depois que aqueles outros relacionamentos se foram levando parte da nossa paixão estúpida e infantil. 
                    Nós não nos beijamos freneticamente na porta antes de nos despedirmos; pelo contrário, ele beija a minha testa, o canto do meu olho. Eu ofereço a minha palma e os meus ombros. E até que funciona. Nunca fizemos planos instáveis de derrubar o estado ou de viajarmos levando apenas uma camiseta e uma escova de dente. Pelo contrário, sorrimos um para o outro, já falamos de filhos, responsabilidades e tomamos chá pela manhã, uma taça de vinho pela noite - uma só. E quando o ar falta e a voz falha e a insonia vem, nos perdemos um nos braços do outro, pensando apenas em cinco minutos de coisa boa e cafunés bem feitos. Não nos amamos com toda loucura da nossa alma, mas com toda a paz que o nosso coração moribundo permite. 
                     E mesmo que ele não goste das minhas piadas de humor negro e prefira U2 a Bon Iver, e me force a fazer exercícios e a comer direito, eu sinto que está tudo bem. E mesmo que ele não goste de Leminski ou de Lovecraft, e não saiba muito bem o que Augusto dos Anjos quis dizer com a ânsia análoga a ânsia, ele sabe dar bons carinhos de dedo e tem uma barriga boa para se deitar. Mesmo que ele não me faça perder o fôlego e o sono a noite; e mesmo que não fume um eventual cigarro, ele garante que não percamos nenhuma música lenta e faz com que eu me sinta num estágio letárgico de lucidez quando me beija. Ele cheira a baunilha e grama e pasta de dente e nenhuma dor. E eu acho que isso me faz bem. 
                    Eu lembro que quando eu te conheci, eu tateei seu umbral até encontrar a chave para te invadir. Você fez o mesmo comigo. E quando nos despedimos eu te devolvi a chave e fui até um chaveiro. Mandei trocar todas as fechaduras e parei de deixar as chaves em umbrais ou debaixo de capachos. Levei ela comigo para todos os lugares e quando eventualmente encontrei alguém que, como em uma dança catastrófica, também carregava a própria chave, não hesitei em entregar de bom grado a minha chave para ele. Para a minha sorte, ele fez o mesmo. Eventualmente nos mudamos um para dentro do outro sem mais complicações e tem sido assim desde então. 
                        Os olhos grandes dele piscam uma, duas vezes até revelar de uma vez o tesouro castanho. Ele dá um bom dia e um sorriso de canto. Beija a ponta do meu nariz congelado e comenta sobre o sonho que teve e sobre o sol estar invadindo a nossa janela. Ele me diz que deveríamos comprar cortinas novas. Eu concordo. Ele se oferece para fazer o café e eu respondo com um sorriso. Chega uma hora que paixões avassaladoras cansam e torcemos para que a paz chova a cântaros. Sou grata pela minha tempestade torrencial. 

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