[Domingo]

[Leia ouvindo "Dançando" - Agridoce]
[Neste domingozinho sem sal, Anelise pensava em caos, amor e torta de chocolate]


              Hoje é domingo e eu acordei pensando em mim mesma. Passei um café forte, vesti um vestido plissado colorido. Pensei na feirinha que abria cedo e comprei uma torta de chocolate na banquinha da dona Lurdes. Me alimentei de expectativa e ansiedade. Um colher por vez. Saltitei por poças de lama e me sentei de frente para o metrô.
                É que hoje me passou pela cabeça aquele domingo colorido que não tinha cara de domingo, quando a gente tomou milkshake e viu aquele filme sem pé e nem cabeça. Não lembro mesmo do que aconteceu no filme, eu acho que era sobre um cara que queria se sentir inteiro ou algo do tipo. E você também achou bobo porque a sua teoria era que ninguém podia se sentir inteiro porque no final do dia nada fazia sentido. Nos sentamos um de frente para o outro e você tocou cavaquinho enquanto eu revirava as suas fotos de infância e achava curioso como você nunca sorria para as fotos. E você disse que faria hambúrguer e comeria sozinho na minha frente se eu não guardasse as fotos ou mencionasse mais uma vez a sua cara feia. Gargalhei enquanto você se levantava e ia para a cozinha.
              Foi naquele domingo que você me deixou a noite na estação. Você disse que eu podia dormir na sua casa e que eu não precisava ir embora, mas eu precisava. Eu sabia que seria provavelmente a última vez que você me daria o ar da graça com suas piadas de humor negro e a sua carranca. E que provavelmente só me mandaria mensagens curtas quando algo legal acontecesse. Eu já sabia o quanto o tempo sacaneava naquela época e sabia que a forma como entramos de repente na vida um do outro já era um prelúdio do que viria a seguir. Nos revezamos carregando um ao outro diante do que era difícil de mais para nós. Fingimos não ver que já havia acabado minutos depois de ter começado. Nós nunca fomos feitos um para o outro e eu queria acreditar naqueles livros que você diz que são imbecis, mas o tempo não vai nos colocar um na vida do outro de novo. E você está certo, afinal: São livros imbecis.
                faziam exatos dois anos que eu não pensava em você. Mas hoje é domingo e eu acordei pensando em mim mesma e nas feridas que já pararam de doer com o tempo e se fecharam como cicatrizes finas e indolores na pele. Pensei na estação de metrô, na feirinha e na dona Lurdes. Voltei cedo para casa. Eu sempre gostei de domingos e essa não era a nossa principal diferença.
                 

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