[Solitude]

 [Leia ouvindo "Cartão Postal" -  Apanhador Só]

[Ana Elisa Egreja]

    Eu costumava dizer que a minha rotina era um inferno de tumultuada. 
   Eu lembro que eu costumava a acordar às cinco horas da manhã todos os dias. Costumava deixar a roupa pronta na noite anterior para não me atrasar. Eu tomava meu café a goles longos sem me importar se a minha garganta queimaria. Pegava as minhas tralhas, entrava no ônibus. Ia sentada. Ainda era escuro e sempre fazia frio. Eu podia ver a fumaça na frente da minha boca sempre que falava. O caminho era bonito. Eu gostava de ver como o cenário da periferia se mesclava com o planalto central e eles nunca mentiram quando disseram que o céu de Brasília era o mais lindo. Eu chegava na faculdade lá pelas sete. Gostava de descer na biblioteca. Devolver meus livros ou emprestá-los logo cedo. Ás vezes nem por isso. Eu só gostava de andar da biblioteca até o bloco de salas por entre árvores e grama com a gritaria dos passarinhos. 
    Eu comprava um café do moço que sempre flertava comigo e me dava café a mais. eu bebericava com medo de me queimar enquanto ia para a sala. Sentia o cheiro de tabaco e de café e de grama molhada. Assistia uma ou duas aulas pela manhã. Conhecia gente nos degraus de um dos prédios ou nos sofás do centro acadêmico. Almoçava cedo para evitar filas longas. Deitava numa toalha em cima da grama ouvindo histórias de conhecidos e de estranhos. Às vezes voltava para a biblioteca e me esbarrava com alguém ou via corujas buraqueiras pelo caminho. 
    Voltava para as aulas. Ora com as leituras em dias, ora atrasadas. Comprava outro café e ouvia os planos de futuro dos meus amigos. Às vezes beijávamos estranhos só para vê-los se tornarem amigos íntimos que riam das nossas piadas e aliviavam a rotina com histórias novas. Ouvíamos música e pegávamos a fila do ônibus.
    Vez ou outra eu gostava de voltar sozinha. Sentia que meus pensamentos eram como um emaranhado de fios. Eu deixava uma ponta na rodoviária e puxava a outra até sair do ônibus. E o emaranhado se desfazia e eu podia ver o sol morrer naquele dia de camarote pelo céu de Brasília, colorido e ofuscante. Se olhar demais, ele te devora, eu costumava dizer.  
    Eu chegava no cursinho quase sempre em cima da hora. Sempre estava vazio quando era uma aula-ninguém-se-importa e por isso eram as minhas aulas preferidas. Gostava de sentar na frente por causa da tomada. Comprava outro café e ria com a minha irmã das obrigações-novas-de-adulto. Ela me deixava no metrô e eu voltava para casa. A lua quase acima da minha cabeça, um livro na mão, os fios se embaralhando de novo e de novo. 
     Eu chegava em casa como um cortiço abandonado, como se ratos corressem nos meus ossos e como se meu piso estivesse inundado. Não pensava no sol nascendo ou se pondo ou no céu me devorando. Não pensava nos cheiros, nos sons, ou como os cafés tinham gosto diferente. Não pensava em quem eu tinha conhecido ou nas piadas que havia aprendido, muito menos nas histórias que tinha ouvido. Eu tomava um banho quente, comia qualquer coisa. Ligava o despertador para cinco horas. Não. Cinco e quinze. E o sono me engolia mais rápido do que o céu jamais pôde. 
    Esses dias eu acordei, coloquei minha máscara e fui correr. Passei na padaria. Dei a volta no quarteirão. Tomei um banho. Comi. Passei quatro horas na frente do computador. Atrasei o almoço. Comi. Fiquei mais quatro horas na frente do computador. Pensei no céu, no sol, nos cheiros, nos sabores, nas histórias, beijos, risos e em acordar às cinco da manhã só por acordar. E o sol nasceu tão lindo. E eu só pude pensar que o céu poderia me devorar quando ele bem quisesse. 

Comentários

  1. Que lindo! Ao ler o seu texto me senti na minha antiga rotina também, lembrei das sensações e foi como se eu estivesse revisitando esses lugares a biblioteca, as salas, o eu, as filas kkkk. Saudade. É maluco pensar e constatar como as coisas mudam rapidamente e como a gente é forçado a se (re) adaptar. Obrigada por esse texto, maravilhosa <3.

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