[Migalhas]

    [Esse texto é para a Ana e para o Caio. Para a Ana por me lembrar de algo sublime como um livro, para o Caio por me lembrar de algo importante como a poesia]
[Leia ouvindo "The Will To Death" - John Frusciante]


[Andrea Kowch]


    Eu tinha essa amiga que morria de medo de pisar em formigas. Lembro que em um dia em que marcamos um almoço, a encontrei de frente para o restaurante, agachada protegida do sol por uma árvore, observando atentamente o meio-fio. Lembro que a questionei. Ela me sorriu e me fez agachar ao lado dela. Vimos a fileira de formigas carregando folhas e restos de insetos e levando para um formigueiro próximo que nunca nem tinha reparado que ficava perto do restaurante.
    "Eu não gosto de atrapalhar o trabalho delas", minha amiga sorriu, "Eu sei que se atrapalharmos a fila, elas perdem o rastro e não se encontram mais. Tomo muito cuidado para não pisar, gosto de ver como elas trabalham". 
     Lembrei de Piquenique na Estrada e em como as formigas se deliciam com migalhas que foram deixadas em banquetes. Lembrei de como eu era pequena e de como Carlos Drummond e aquele meu amigo Caio se sentiam deuses quando matavam formigas. Pensei em mim, fazendo meu trabalho inútil de cada dia, respirando fundo e levando migalhas direto para o formigueiro. Pensei na minha amiga Ana e em Deus.
    Ainda não sei se Deus esqueceu de propósito algumas migalhas de um grande banquete ou se pisa com cuidado pelo universo para não me esmagar enquanto eu cato meu lixo. Não me sinto reconfortada nem de um jeito, nem de outro. Sinto que dói pensar que dependo de algo tão abstrato para comer ou mesmo não ser esmagada. Mas é um consolo saber que não depende de mim. Eu posso me isentar de toda e qualquer responsabilidade. 
    Posso me dizer formiga pequena que perdeu a trilha porque algum ser grande pisou na minha fila. Posso me dizer desapaixonada porque o destino ou Deus ou mesmo o acaso assim o quiseram. O piquenique não deu certo, esqueceram de deixar mais que uma gota de vinho para cada. Não foi minha culpa. 
    Me lembrei também daquele quadrinho que li. Seres pequenos moravam dentro da garotinha que morreu e precisaram procurar outro corpo pra habitar. Eu sonhei certa noite que eu era essa garotinha e que malditas formigas vinham se apossar do meu corpo inerte na relva, bem depois dos seres pequenininhos me abandonarem oca. Talvez não sejamos tão pequenas assim. Eu e as formigas, quero dizer. E talvez se acaso ou Deus vacilarem, possamos moldar o universo a nossa imagem e semelhança, até porque ainda estamos aqui e ainda temos uma colônia para alimentar. E eu espero que não seja nenhuma heresia pensar assim e que Deus me perdoe (irei a igreja domingo por via das dúvidas).
    Passei um bom tempo com a Ana observando formigas naquele dia. E no dia seguinte, quando eu fui almoçar sozinha, parei para vê-las. Piquei uma folha nas minhas mãos e joguei para elas. "Comam, miseráveis. É bom serem gentis se eu morrer por acaso em alguma relva". Já faz algum tempo que não observo formigas. Mas o meu amigo Caio escreveu algo que me fez lembrar sobre a arte de matar do Carlos Drummond, tal como ele, uma deusa infante, choro: "Sua impotência. Chora/ a traição da formiga/ À sorte das formigas/ traçada pelos deuses".



[Vai lá ler a crônica do Caio: https://caiocorado.medium.com/cr%C3%B4nicas-1-a2f555a34fe6]

 

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