[Espelho]

 [Leia ouvindo "Fly Away with me" -Tom Walker]

["Há um preço
Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.
E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue
Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas" - Sylvia Plath]

(Amy Judd)

    Quando eu me olho por tempo demais no espelho, começo a pensar nas sete vidas que já tive. Meu olhos não parecem ser meus olhos. E eu penso naquela foto velha, guardada, quase como um lembrete constante do que meus olhos já foram. E eu me sinto humana: tão humana quanto possível. Mas o espelho ainda é mais difícil de olhar do que a foto. Ainda mais quando eu estou nua. Me ver me dá vontade de ser um amontoado de células borbulhando em uma sopa primordial. Eu sempre me sentia como que prestes a morrer por não conseguir acompanhar sua evolução. Se eu pudesse voltar a ser um amontoado de células, a parte comum a todo ser vivo e escolher a minha própria linha evolutiva, eu me desenharia como um pássaro. Eu teria mais coragem de voar nua e saberia uma porção de coisas novas. As velhas eu esqueceria.
   Eu te via como alguém sempre em adaptação. Se adequava ao frio. Ao romper do sol. E sabia dançar nos mesmos compaços da música. E até mesmo, impedia os colapsos que se davam dentro de mim emitindo a mesma frequência cardíaca que a minha. E eu tinha medo de ficar nua na sua frente. Isso em parte porque você parecia ser mais gente do que eu e em parte porque você parecia me olhar com fome. Você poderia me quebrar em milhares de pedacinhos e me devorar como quem come salgadinhos; você sentiria gosto de fel e de sangue pois eu desceria rasgando pela sua garganta. Mas você limparia a boca com um bom vinho seco e engoliria alguns laxantes para me lavar de você. Mas já seria tarde. Eu corroeria seu estômago em pequenas úlceras. e você tomaria antiácidos. Doeria, mas você ficaria bem, porque o mais forte sempre sobrevive. 
    Se eu pudesse ser pássaro, eu não te levaria comigo. Te trancaria no espelho junto com a porra da fotografia. Eu viveria alguns anos em mausoléus. Veria meu reflexo poucas vezes quando sobrevoasse algum rio. E minha imagem seria distorcida. Eu olharia meus olhos e eu os reconheceria como meus. 

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