[Solidão, minha estação]

[Leia ouvindo "Alone again (naturally)" - Gilbert O'Sullivan]

 [O tempo é de estiagem e despertar é preciso]

 


(Katie O'Hagan)

    Essa noite não tem flores e não há um abraço para o qual voltar. Fui me consolar dos sustos. Bebi minhas lágrimas e lambi minhas feridas. Pela noite toda a tristeza não me deixou e eu acordei chorando. Lembro que mamãe dizia que eu tinha tendência ao drama e eu escolhi carrancas para usar ao meu favor. Se temos um defeito, dizia papai, temos que ocultá-lo. Essa era a brincadeira quando éramos crianças: ríamos do medo até ele ficar ridículo e diminuir, mesmo que fosse um monstro horrendo - A carranca que escolhíamos era pior. 

    Essa noite não tem flores e o florista se mudou. Não vende mais rosas ou girassóis - Mudou de ramo - dizem as más línguas. Talvez ele tenha finalmente alcançado aquele dinheiro e tenha se mudado de vez para o interior. - Brasília tem um clima muito estranho - ele dizia. Quando ganhei a minha primeira rosa daquele cara num encontro despretensioso, ele dizia que só éramos inteiros sozinhos; não existia uma alma gêmea a qual recorrer ou um Deus que habitava em nossa psiquê. Eu ri porque concordava. - É muito bom viajar sozinha, eu disse, já acostumada. Nossos próprios gostos, nosso próprio amor, nosso próprio jeito. Brindamos a solidão e rimos disso.

    Essa noite não há flores e a juventude está perdida. Meus amigos estão ainda procurando emprego. Somos pobres e fudidos que pedem para colocar 50 de gasolina no tanque e ainda deixamos o carro morrer na subida. Ainda temos vinte e poucos e não conseguimos chegar aonde queremos nem com o waze ligado. Alguns estão se casando. Alguns se formando. Alguns parindo. Outros sufocando. Mas estamos todos vivos brindando às flores que nunca recebemos e aos caminhos que nunca acertamos. 

    Essa noite não tem flores e ainda estamos vivos e por isso não recebemos nenhuma. Amamos vários ao mesmo tempo e não beijamos nenhum. Lemos vários livros ao mesmo tempo, sem terminar nenhum. Nosso hiperfoco dura pouco. Nosso amor é passageiro. Ainda engatinhamos e estamos esperando pelas flores.

    Talvez um dia, a chuva chegue. Talvez um dia ela chova a cântaros e cântaros. Talvez a gente sinta a pele se esticar e corroer enquanto vira um botão. Quando isso acontecer, teremos flores. 


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