[Malícia]

[Leia ouvindo "Every Kind of Light" - Global Genius]

[Ela me ensinou essa brincadeira: você encontra uma planta específica, bate o dedo nela e diz: Malícia, sua mãe morreu, seu pai ficou. A planta se fecha. É assim que se machuca alguém.]

Katie Ohagan

           Você me olha com seus olhos de malícia. Me pede para ficar. Me olha como alguém que se diverte com uma piada que mais ninguém sabe, enigmática. A própria esfinge. Eu não vou te decifrar porque quero ser devorado, eu digo. Eu vou te devorar porque você me olha como quem implora para ser amado, você responde. Brincamos disso por um tempo e você se despede com um beijo no rosto, arrastado, quase pingando para o canto da boca. Esse é seu jogo, é o único jeito que você funciona. 

            Quando eu te conheci, me disseram que você era feito água, escorria com uma facilidade muda, pingava de qualquer mão que ousasse te prender em concha para te beber. Às vezes deixava que molhassem a língua. Às vezes. Quase nunca. E você tinha aqueles olhos pequenos, intensos, castanhos. Você não desviava o olhar, mesmo que estivesse envergonhada. E quando me beijou a primeira vez, foi como se eu entrasse em pausa. Estávamos falando sobre qualquer coisa idiota, quando você avançou e nossos lábios dançaram. Voltou a conversar comigo como se nada tivesse acontecido. Brincamos assim algumas vezes.

         Você me cercou com seu espírito, me dava meias respostas, amor incompleto, mas apoio irrestrito. Fazia de tudo para o seu abraço encaixar no meu, deixava que minha cabeça descansasse no seu peito e devo ter cochilado assim mais de uma vez. Você gritava que achava que me amava como louca, mas sempre completava dizendo que não entendia o amor, então não podia me dar certeza em nada. Você gostava de entrar e sair, de brincar comigo e com os outros na corda bamba. Mordendo, assoprando. Puxando, relaxando. Lendo cada um dos meus sinais, sabendo que eu te devoraria quantas vezes você deixasse. As vezes, você dizia, quando a gente deixa os outros nos machucar, a gente acaba assumindo o controle. Nunca funcionou comigo.

         Hoje, depois que você fechou a porta, eu quis te machucar. Queria gritar que você era vazia, que tinha fome, que devorava todo mundo e fazia questão de mastigar pelo menos quarenta vezes antes de engolir. Quis fugir de você, sumir para sempre, ignorar todas as notícias que você desse, queria que você sumisse. Mas eu sei que, amanhã, assim que o sol nascer e você me pedir para passar na padaria para comprar pão e ir para a sua casa tomar café e fazer as pazes, eu vou. E você vai me mastigar sei lá quantas vezes antes de me devorar. Porque esse é seu jogo, é o único jeito que você funciona.

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