[A nostalgia veio me beijar]

 [Leia ouvindo "K." - Cigarettes after sex]

Jennifer Balkan


["Eu vou me acostumando ao esterco a medida em que piso nele" - Esperando por Godot]

    Estou longe de casa agora. Não lembro se tranquei as portas, se desliguei o gás, se apaguei as luzes. Não lembro sequer as cores das paredes. Mas sei que deixei meus sapatos bons perto da porta, perfeitamente alinhados, esperando uma boa ocasião para serem usados. Talvez eles nunca sejam usados porque eu tenho essa mania besta de adiar planos e perder boas ocasiões. Eu chamo de marasmo, as vezes chamo de procrastinação, as vezes de autoconhecimento. 

    Eu gostava de sonhar e fazer planos quando eu era pequena, e não me limitava a profissões convencionais. Pensava em um mundo caduco e me fingia de deusa menor perfeitamente feliz elaborando microcosmos em espasmos de felicidade. As dores não doíam tanto, e se doessem demais, pingavam para o papel em forma de poesia. Hoje isso já não importa, porque adultos podem tomar um ou dois analgésicos com uma dose de cachaça.

    Mas essa habilidade de sonhar e de ter sido uma criança promissora, eu herdei da minha avó. Ela costumava voar entre os precipícios, saltar por abismos, até os vinte e poucos anos quando teve que engolir os sonhos e viver da realidade. Ela costumava colecionar borboletas mortas em um álbum. Chamava sua coleção de pequenos desesperos, porque, segundo ela, não havia nada mais desesperador do que ser leve, ter belas asas e não alçar voo. Lembrei da coleção esses dias, quando encontrei uma borboleta morta no armário, mal saiu do casulo e nem chegou a alçar voo. As asas carcomidas e coloridas, o potencial desperdiçado. 

    Estou longe de casa agora e queria calçar meus sapatos bons porque o mundo é tão grande e eu só queria dar uma volta; mas eu tenho muito sonho para tão pouco tempo e tão pouco material. 

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