[Bagunça]

[Leia ouvindo "130 anos" - Agridoce]

 "As pessoas que amamos 

são eternas até certo ponto 

Duram o infinito variável 

No limite do nosso poder 

De respirar a eternidade"

(Carlos Drummond de Andrade)

[Nancy Prator]

    Gosto de colagens analógicas. E por isso eu tenho uma pasta de recortes completamente bagunçada. Gosto de escrever minhas ideias em post-its e em cadernos avulsos, folhas soltas. Há uma pilha de anotações e de bagunça na minha mesa de centro. Bagunça que eu guardo jurando que eu vou precisar, pois vou fazer algo novo com aquilo. É como deixar na gaveta um amor de quinta jurando que um dia vai beijar aqueles lábios.

    Esses dias, enquanto eu faxinava toda essa bagunça; encontrei fotos. A foto de quando arranquei o primeiro dente, perto de um conjunto de palavras recortadas de uma revista que formavam um poema bobo; uma tentativa de imitar uma poesia concreta. A foto com a minha melhor amiga da época, de quando eu tinha sete e ela seis, os olhares cúmplices se cumprimentaram e se viram a última vez quando tínhamos 15 e 14. O primeiro sorriso pelo qual me apaixonei no sétimo ano. O primeiro beijo que eu dei aos 16. Encontrei outros amores também; a primeira fuga, a primeira decepção, o que quase deu em algo, o que combinava comigo até nos defeitos, todos perfeitamente colecionados e guardados. Os tirei da caixa como quem acha um tesouro. Vi os traços, ladrilhei os caminhos. Vi minha foto de formatura no meio. Três garotas que eu nunca mais vi porque a vida passa e o mundo gira e graças a Deus pelas fotografias. 

    Se eu fosse um amor eu não queria ter me conhecido antes. Em nenhuma das versões. Eu fingiria que não havia criado expectativas. Eu fingiria que não atuei como a mulher perfeita sob o corpo perfeito sendo ilusionista ao nos tatearmos no colchão. Fugiria das minhas expressões nas fotos. Tentaria ser um estêncil; feita de tinta, lembrança e álcool como nos mimeógrafos e todos correriam para sentir meu cheiro quando eu estivesse pronta. Mas não sei se acabaria sendo jogada fora. 

    Eu nunca jogo bagunça fora. Acumuladora que sou, guardo todas as lembranças do mundo.

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