[Satisfação]

["Trato meu coração como uma criança mimada. Satisfaço-lhe todas as vontades" - Goethe]  

[Leia ouvindo "Ends of the Earth" - Lord Huron] 

[Mais um texto ruim e sem sentido para a coleção]


[kate O'Hagan]


    Meu coração sempre foi uma coisinha pequena, enjoada, fazendo birra para andar no banco do carona. Soprando as velinhas o mais rápido que podia para subornar Deus e ter o desejo atendido o quanto antes. Coisinha ansiosa e atrevida, não gostava de esperar, gostava de entrar fazendo alarde, não andava na ponta dos pés, mas sapateava na entrada e na saída. Dançava em cima da mesa e fingia que não gostava dos olhares que recebia. Falava de timidez e sustos com uma delicadeza quase puritana. Meu coração sempre teve aquela malícia instruída, ele foi alimentado com contos de fadas e textos do romantismo que deram a ele uma pressa cega de amar. Aprendeu com Plath, desde cedo, a exibir suas garras pela noite e a procurar desesperado por algo para amar.
    Ele sempre amou fácil. Servia de travesseiro para cabeças cansadas, colecionava lágrimas entre as garrafas de tequila. Não se incomodava com cheiro de cigarro. Cantava canções de ninar e convidava quem quer que fosse para brincar. Gargalhava alto. Foi muito amado. Ganhou poemas e declarações sussurradas como quem confessa um crime, se pendurou para alcançar certos braços. Correu para não perder encontros. Caiu, esfolou os joelhos e quebrou o braço. E como boa criança mimada que era, abriu o berreiro todas as vezes. 
    Ele costumava me acordar pela noite, com sístoles descontroladas, me provocando sustos desmedidos e pequenas febres. Ele adorava pregar peças como uma criança endiabrada, ou caía num tédio absoluto. Hiperativo, gostava de histórias bem contadas e de gargalhar. Eu o acostumei com pequenos passeios e saídas de campo, usávamos chapéus de palha, pegávamos carona com desconhecidos e passávamos a noite em hotelzinhos beira de estrada, comendo porcaria e enchendo a cara.
    Brigamos algumas vezes quando tentei discipliná-lo, tirar a birra e a manha, parar de satisfazer-lhe todas as vontades, transformá-lo num perfeito adulto. Ele estava acostumado com poemas intercalados. O'Hara, Drummond, Pessoa. Leu Bukowski e cismou que havia um pássaro morando enjaulado dentro dele. Discutimos feio naquela vez, tentei alimentá-lo a força com disciplina. Tentei fazê-lo sensato, forcei-o a parar de andar descalço e de puxar conversa com gente estranha. Tirei as viagens de carona, o proibi de beijar e de dançar quando lhe aprouvesse. E ele só falava do pássaro que morava dentro dele. Virou uma criança tímida. Comedida. Esboçava um sorriso ou dois. Eu disse que éramos adultos agora, ele assobiou fraquinho e eu ouvi o pássaro cantar pela primeira vez. Senti o coração tirá-lo da gaiola para ver a sua cor azul. "Eu disse que ele estava lá", ele implicou. "Bukowski que disse", eu retruquei. Eu fechei as cortinas, tranquei as portas. Deixei o pássaro solto, o coração descalço. O deixei ser uma criança mimada por mais uma noite.

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