[O amor na porta]

[Quando Rilke estava começando a ficar orgulhoso de mim por, como escritora amadora, parar de escrever sobre o amor, eu o decepciono. Ainda bem que não podemos trocar cartas.]

 ["Existe algo mais tedioso do que os episódios rapazes-moças? Nada; entretanto inexiste outro tédio que seja eternamente registrado. Eva seduziu Adão na idade das trevas, mas a tragédia do homem é morrer e nascer de novo, e a cada novo nascimento o ciclo recomeça. Variações sobre o mesmo tema" - Sylvia Plath]

[Leia ouvindo "An Honest Mistake" - Mating Ritual, Lizzy Land]


[Maria Kreyn]

    Eu saí esses dias. Um encontro leve, calmo, desapressado; mas com beijos demorados e frenéticos. Ele era bom de papo, a cabeça boa, o riso frouxo, boas piadas, tiradas rápidas. Procurei pedaços meus nele e achei várias brechas para me encaixar. Ele me contou das desilusões amorosas, espalhamos histórias um na frente do outro e compartilhamos pequenas catástrofes. Ele me falou daquela pessoa com quem nunca teve nada, mas que era a We could've had it all dele. Contei da minha pessoa e de como ainda pensava nela muito raramente quando estava quase dormindo. As peças que o cérebro desocupado prega na gente. Brindamos e bebemos comemorando os amores fracassados, os prazeres e os aprendizados. Fumamos um cigarro e Clarice teria ficado orgulhosa. Ele dirigiu até minha casa, enquanto cantávamos Pedra Letícia, se despediu na portaria. Não o chamei para subir. "Amanhã trabalho", menti.

    Vesti um pijama, abri um vinho. Brindei as paixões de quinta. As paixões "que não são tão sérias". Aquelas que palpitam o coração o suficiente para alguns encontros, beijos apressados e brigas de perna. Fiquei aliviada. Não lembro qual foi a primeira roupa do amor. Mas ele tinha cabelo cacheado, olhos castanhos e a atitude de quem está pouco se fudendo. Depois disso, o amor amadureceu, começou a usar óculos, me ensinou a beber e tirou a carteira de motorista. O amor me levou em viagem e me ensinou a ser espalhafatosa. Brigou comigo algumas vezes e cheirava a café e a tabaco. Hospedei o amor algumas vezes em casa, ele lavou os pratos, fez a própria cama e pedia o jantar quando não queria cozinhar. Mas o amor nunca fez um contrato. Saía e entrava a hora que queria, tinha sua própria chave e era desaforado. Mesmo assim, entrava sem fazer alarde enquanto eu dormia. Saía descontrolado, pela porta da frente, levando uma mala de mão e um chapéu de palha; porque, apesar de tudo, já dizia, Drummond, "amor é bicho instruído".
    Mas amadurecemos um pouco esses anos, ou pelo menos espero. Vez ou outra, quando o amor quer chegar, como nessa noite, ele manda um bilhete. Fica pouco, tira um cochilo do meu lado, me abraça forte e diz que já deve sair. Eu boba, sirvo um vinho; e conversamos sobre como estamos indo bem. Sobre como nossos amigos estão atrás de emprego. Sobre o encontro da última noite, com o cara engraçado que ouvia Pedra Letícia. O amor me conta que o nosso We could've had it all está casado agora e que tem uma filha linda com muito cabelo e quase nenhuma unha. Eu dou meio sorriso e o amor pergunta se o cara da última noite não poderia ser alguma coisa. Eu viro a taça com um riso frouxo. "Ele teria adorado conhecer a gente uns três anos atrás". E é só o que dá tempo de responder, porque o amor, apressado, sai pela porta da frente. 

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