[Vigas]

 [Leia ouvindo "Solanin" - Asian Kung-Fu Generetion] 

["Durante todo o maçante e e sombrio e silencioso dia no outono daquele ano, quando as nuvens se penduravam opressivamente baixas no céu, eu passeava sozinho, a cavalo através de um trecho peculiarmente sombrio do campo e finalmente me deparei, enquanto caiam as sombras do anoitecer, com a visão da melancólica Casa de Usher. Não sei como isso se deu, mas com o primeiro vislumbre da edificação, uma sensação de insuportável tristeza invadiu a minha alma. Eu olhei desde a paisagem simples dos domínios das paredes dissolutas, até os troncos brancos das árvores em decomposição com absoluta tristeza na minha alma. Havia uma frigidez. Uma doentia morbidez no coração" - Poe]


(Merry See)


        A última vez em que estive lá, foi naquele ano confuso, quando aquele garoto se enforcou na árvore ali perto, na época do clima estranho, onde há folhas secas pelo chão, mas essas folhas também estavam úmidas pela chuva. O dia inteiro foi um chove-nãochove. E é engraçado como eu me lembro do cheiro daquele dia. Parte terra molhada, parte tabaco e parte café coado e um pouco de mofo. Era o cheiro daquele prédio velho. Havia pombos também. E eu não andei pelo gramado como costumava fazer quando via folhas secas no chão, pelo simples prazer de ouvi-las estatelando nos meus pés. Eu não andei pelo gramado cortando caminho-pelas-folhas-secas. Isso porque as folhas secas estavam encharcadas e não há graça nenhuma em pisar em folhas secas encharcadas.
       Lembro que encontrei o porteiro quase dormindo, caindo da cadeira. Trocamos duas palavras. O conhecido riu do meu casaco, mas eu não me lembro do tom de castanho dos olhos dele. Ou do tom de voz que ele usava para fazer piadas e falar besteira. Lembro do cheiro de cigarro. Lembro dos óculos bem redondos e dos cabelos que começavam a faltar nas laterais. Talvez ele esteja calvo hoje em dia. Mas não sei. Foi a última vez que eu o vi. Eu costumava pular de dois em dois degraus para chegar logo no apartamento. Para fugir da escadaria mal iluminada e de todo aquele concreto.
      Eu costumava achar o prédio nojento. Mofo subia pelas paredes, dava para ver as infiltrações e placas de bolor se instalando nas paredes cinzas. Odiava as vigas da cor do concreto que serviam de abrigo para os pombos. Odiava os pombos. Eles se banqueteavam, construíam ninhos, se sentiam bem-vindos, cagavam em tudo. Mas o lado de fora do prédio me trazia um vazio confortável no peito, chegava até a valer a pena subir as escadas para alcançar uma varanda e ver o céu se perdendo em cores; ver as árvores numa dança fria com o vento; sentir o cheiro de terra molhada e folha e mofo. Era uma dessas sensações que a nostalgia entrega, como se o bolor das paredes encontrasse caminho pelas minhas narinas, caminhasse pela minha garganta, escorregasse pelos meus brônquios, e, de alguma forma, se alojasse na minha aorta. Deveria haver um nome específico para esse sentimento. Essa ferida já cicatrizada que não sara nunca. Esse saudosismo esculachado de um prédio nojento que me faz ter saudade de uma época que não foi tão boa assim. Um lugar que já foi meu, mesmo que maltratado e que agora está alugado por outra pessoa.
          Essa outra pessoa também acha o prédio nojento, odeia os pombos e também prefere a vista lá de cima e o espaço lá de fora. Essa outra pessoa gosta de acender velas para disfarçar o mofo, porque ela ainda não aprendeu que o cigarro e o café coado são melhores para isso. Ela tira sonecas nas tardes preguiçosas de domingo, reclama do barulho que a vizinha do quarto de cima faz. Abre uma lata de cerveja morna e beberica nos dias ruins. Ela planeja seus sonhos, mantém sua cabeça de pássaro no lugar, enrolada em um ninho, como os pombos. Um dia - ela não vai saber quando - vai ser a última vez que ela verá o prédio caindo aos pedaços. Quando ela apagar a luz e se despedir do porteiro, ela vai saber que pode lidar com qualquer coisa. Só aí, ela vai se esticar para alcançar uma felicidade frágil como as mãos de uma criança. E vai sentir falta de todo o processo. 

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