[Relógio]

[Leia Ouvindo: "First Class" - Rainbow Kitten Surprise]

["Eu descubro a estranha mecânica do seu coração. Ele trabalha com um sistema de correias autoprotetor, ligado à falta de confiança que o habita. Ausência de auto-estima lutando com uma determinação incomum"]




(Merry See)
          

          [Você disse que me abrigaria se eu corresse para sua casa um tempo atrás, então eu corri levando uma mala de mão.]

              Quando cheguei em casa do trabalho essa semana, você estava vendo aquele filme em que o garoto tem um relógio no lugar do coração e eu ri porque tinha comprado o livro sobre esse garoto para você no caminho. É um cuco ou um relógio de pulso, você me perguntou, o que tem no seu coração? Acho que é uma bomba relógio, eu respondi pensando naquela poetisa que dizia que não entendia o tempo, mas que o respeitava. Não sei se eu respeito o tempo, e por isso acho que posso explodir a qualquer momento. E você me deu uma xícara de chá porque não queria aumentar as minhas pulsações e me causar uma taquicardia. E eu ri. Ri porque a bomba já estava acionada e eu te contei que para Brás Cubas o amor durou quinze meses e onze contos de réis. Ela era uma prostituta, você me respondeu. Isso não quer dizer nada, todo mundo vem com prazo de validade, mesmo as putas, eu poderia ter dito.
            Eu acho que eu vou embora, eu te contei. Por quanto tempo você ainda fica? Você me perguntou. Um ano inteiro e cinco contos de réis, eu poderia ter dito. Uma semana inteira, eu respondi, porque o prazo de validade que veio estampado nas nossas testas está chegando. E você não se importou. Me convidou para o seu chuveiro e eu tomei um banho longo com você. Eu acho que eu nunca te vi nua, você me contou. Não viu porque não queria, eu respondi enumerando para você as vezes em que eu tentei me exibir para você. Isso lá é jeito de falar com quem te abriga, caramba? Você reclamou. E eu dei as minhas costas molhadas para você esfregar com aquele sabonete cheiroso. 
              Meus cachos se amassaram quando eu deitei na sua cama e eu não consegui dormir a noite por causa da sua respiração descompassada. Você parecia ter uma cabeça de pássaro. Por isso que eu uso seu colo e o seu peito como ninho - você me contou certa vez. Lembro da primeira vez que eu vim. Você separou uma escova de dentes, trocou a roupa de cama, me deu duas gavetas e uma parte do seu guarda-roupa e mal se mexia durante a noite com medo de me acordar. Eu falo durante a noite, eu te contei. Eu tenho pesadelos, você disse. Logo estávamos habituados um ao outro. Minha mão te alcançava antes que eu pensasse em te tocar. Você se lembrava de todas as minhas histórias - até das que eu contava enquanto estava dormindo. E era eu que te acordava quando você entrava num pesadelo. E você lavou meu cabelo quando eu quebrei o braço. Eu pensei nas nossas testas e me perguntei se eu poderia raspar as datas de validade. Mas seria trapaça. 
                 A semana pareceu voar. Tomamos café juntos todos os dias e eu te mostrei as partes que eu grifei do livro. E você leu Bukowski para mim, um trecho específico que dizia que só se é possível amar um ser humano, quando não se conhece ele. Por isso que você vai embora? Você perguntou. É o prazo de validade, eu te respondi. Vimos o filme do menino-com-coração-de-relógio mais uma vez e você prometeu alimentar bem a sua cabeça de pássaro na minha ausência. Eu peguei minha mala de mão, juntei as minhas tralhas e fui embora antes da bomba-relógio do meu coração explodir. Você não precisava ouvir o bang. Fui parar num hotelzinho beira de estrada. Explodi. Danos mínimos porque eu respeitei o prazo de validade. Tomei um café sem medo da taquicardia. Abri o peito, dei corda no coração, programei a bomba relógio de novo. 

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