[Comparência, Chuva e O Lugar Que Eu Dei]

[Leia Ouvindo "João e Maria" - Nara Leão e Chico Buarque]

[Não,
a água não me escorre

entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.
- Conceição Evaristo]

ALYSSA MONKS
             Estrada esburacada, chuva contínua e eu ia pulando nos bancos do ônibus. As lombadas doloridas, oferecendo o lugar para as velhinhas de bocas cheias de bons argumentos. O homem que sentava ao meu lado de pernas arreganhadas. A coxa quase colada na minha e eu fujo para a minha esquerda e ele abre mais as pernas e eu levanto. E ele fecha as pernas quando um outro homem senta ali, ao lado dele. Tudo bem. Ele foi criado homem. O meu horóscopo disse que eram tempos difíceis para os sonhadores - ou foi Amèlie Poulain? Não sei. Não lembro de sonhar desde que eu descobri que eu era mulher. E que a minha amiga era negra. E que meu amigo era gay. E que meu tio almoçava ao meu lado fazendo piadas machistas e homofóbicas e racistas e eu percebi como a nossa existência era incômoda. Foi quando eu fui para a igreja e oraram para eu parar de beijar mulheres também. "Deixa de ser confusa, isso é a pomba gira". E eu me lembrei do meu amigo do candomblé quando ele me contou de algumas entidades e alguns guias com os olhos brilhantes e eu lembro de como eu achei bonito. E eu pensei em Deus. No Deus que os homens inventaram e nos homens que se fizeram Deus se esquecendo completamente da vez em que Deus virou homem. E eu lembrei das eleições de quando meus amigos ficaram com medo e nós voltamos para casa juntos de metrô falando sobre a ditadura e a música de protesto e sobre Machado de Assis e chegamos a espalhar cartazes falando sobre não soltarmos as mãos. E eu ouvi a Rita Lee e pensei em como a existência era algo poderoso. E eu pensei em Dina Babbit pintando o nosso retrato e murais bonitos e todos nós estáticos enquanto nos olhavam em um museu que promete não repetir os erros do passado. O ônibus faz uma curva fechada e eu ouço os homens conversando sobre o comunismo e dizendo como os esquerdistas planejavam dominar o mundo e em como comiam criancinhas no café da manhã e eu me lembrei sem querer de João Goulart e Jânio Quadros e com um certo pesar do final de Incidente em Antares. Érico, meu querido, você sabia o que estava acontecendo. Eu também sei, amigo. Eu também sei. 

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