[Enleados]

[Leia Ouvindo "Vai, Menina" - Ana Laurosse]


(Carmen Mansilla)




Eu te vejo correndo ainda. Buscando ar, o fôlego perdido. Mesmo agora quando estamos só nós duas, de costas na cama, camisetas regatas e calcinhas. Sua calcinha não é de renda porque você simplesmente odeia calcinhas assim. Você diz que prefere as de algodão porque elas não pinicam.
Os cachinhos do seu cabelo ondulam pelas costas me lembrando das parábolas importantes: as curvas do cachos, do seu pescoço, o arqueado das costas, coxas e calcanhar. Você é feita de parábolas e poucas pessoas vão conseguir ver o verdadeiro significado disso. Eu volto os olhos para seus cachos. Cachos emaranhados, uma verdadeira bagunça, eu gosto de vê-los assim dançando pelas suas costas. Em parte por combinarem com o emaranhado de fios que eu guardo na boca do estômago, em parte porque você é bonita. O seu pescoço está a mostra agora e eu adoro como as pintinhas dele parecem formar o Cinturão de Órion. A flecha aponta para a sua orelha, que ainda não está furada porque você tem medo de agulhas.
É tão incrível como tudo em você é relevante. Eu me sinto como quem encheu os pulmões de ar depois de ter se afogado no mar e vomitado sal. Seus pés estão apoiados na parede agora e você tem um anel ridículo no dedão do pé que me fez gargalhar a primeira vez que vi. Suas costas estão coladas no forro azul claro do colchão. O peito subindo e descendo. Subindo e descendo. De novo. Uma respiração pesada. Irregular. 
E eu te pergunto no que você está pensando e você me responde com outra pergunta, umedecendo os lábios. Você me pergunta como eu era na escola e eu deito de barriga para baixo do seu lado. O rosto virado para você e suas sardas.
Eu te conto que quando eu estava no ensino fundamental, eu caçava lagartas e era bailarina. O coque em cima da minha cabeça desenhava palitos pelo meu corpo das minhas sapatilhas de meia ponta e criava prolongamentos nos meus braços. Eu tinha corpo e cabeça de elfo. Eu te conto que eu era tagarela até a quarta série, mas engoli um emaranhado de fios entre a quinta e a sexta. Eu te conto que ia para a igreja aos domingos e prometia três mil coisas para Deus e olhava para os rostos das pessoas que choravam durante as orações. Te conto que eu era a primeira a chegar e a última a sair nas aulas. Te conto que parei de fazer melhores amigas na oitava série e não lembrava de boa parte desse ano porque eu dormia demais. Te conto que dei meu primeiro beijo aos dezesseis e da minha incapacidade de fazer planos e de como eu ainda sinto o emaranhado de fios me rasgando por dentro vez ou outra porque eles nãos digerem nunca. Eu ainda considero enfiar os dedos na garganta e puxá-los. Desembaraçá-los. Mas não sei se faria muita diferença, eu acho. 
Você sorri passando os dedos no meu cabelo ralo como quem faz carinho em um bichinho e eu te dou um sorriso porque você sabe o que falar até quando não fala. “E você?” eu pergunto “como era na escola?” 
Você sorri apenas com os olhos castanhos, vidrados no teto como que contemplando algo que só você é capaz de ver, algo fascinante e divertido e quase proibido. “Eu era grande e bonita e inteligente até a quinta série. Eu tinha quase um metro e quarenta. Mas parecia que eu tinha dois. Acho que comecei a encolher na sexta série”. 
Eu espero que você diga mais. Que me fale de quando caiu de bicicleta ou de quando empinava pipa. Mas você simplesmente emudece. Fecha os olhos e adormece. Para de correr. Respira compassadamente. Volta a ser menorme.

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