[Quando eu tinha onze anos]

[Leia ouvindo "Breath Me" - Sia]
[Quando se tem dez anos, o mundo cabe na palma da mão. Quando você cresce, você vira formiga]


Teresa Oaxaca

                  A última vez que eu me lembro de ter sido feliz, minha avó estava bordando enquanto o bolo assava e eu corria pela casa com meus pés descalços e com os dentes da frente faltando. Eu costumava lamber a colher do bolo e gostava de ver a massa crescer dentro do forno enquanto o cheiro doce se espalhava pela casa. Naquela época, eu dormia de luzes acesas e acreditava no poder que ela tinha para expulsar monstros e demônios. Eu não combinava as meias e embaçava o vidro de propósito para poder desenhar.
                   Nessa época os fortes eram construídos com lençóis e cadeiras, me vestia com todas as roupas que eu encontrava no guarda-roupa e saía com a minha bota azul preferida. Eu me lembro de sair para explorar jardins e caçar fadas e trolls. Me lembro como eu fingia acreditar em sereias e mergulhava abrindo os olhos no mar para vê-las; e naquela época eu não sentia os olhos ardendo quando fazia isso. Eu era mil coisas. Podia ser bruxa, louca, feiticeira, pirata e contrabandista e tudo acabava as sete da noite quando meus pés já estavam esfolados de tanto correr descalça.
                   Lembro das primeiras dores de crescimento, a primeira denúncia silenciosa que meu corpo fez. Os músculos se rasgando tentando acompanhar os ossos e eu acordava pela noite gritando e não era nada demais. A primeira vez em que eu sangrei e como as meninas mais velhas me chamaram de idiota e bebê chorão e me mandaram calar a boca porque a minha voz era irritante. Foi a primeira vez que eu quis chorar e a primeira vez que minha mãe disse que eu herdei o péssimo temperamento do meu pai.
                   Depois de um tempo os livros grossos demais vieram sem lupa nenhuma para acompanhar e eu sentia que se eu internalizasse tudo o que estava escrito eu seria dona do mundo. Foi no ano em que eu comecei a tomar pilulas brilhantes para manter  cabeça no lugar e quando o médico me perguntou onde doía, eu respondia que estava anestesiada e eu parecia acreditar nisso.
                           Eu lembro do primeiro "eu te amo" e de como soou como um palavrão na minha cabeça. Eu lembro do primeiro beijo que tinha gosto de ternura e liberdade e skol beats. Eu lembro da primeira vez que eu disse "eu te amo" e de com saiu mais alto do que eu planejava. Eu lembro do segundo e do terceiro beijo e de como tudo parecia fazer sentido de novo. Foi quando eu fiz a minha primeira viagem sozinha e os primeiros amigos e a forma como tudo virava piada na nossa boca porque tínhamos língua afiada e bons argumentos.
                        E eu lembro daquela festa dentro do meu vestido de veludo e do primeiro cigarro-trago-tosse-trago-tosse-apague-o-cigarro-você-não-sabe-o-que-está-fazendo. Foi a primeira vez em que eu dormi fora de casa sem um teto sob a cabeça pensando só nos meus sapatos bonitos e na garota que tinha gosto de torpor e que dividiu uma garrafa comigo. Foi o ano em que meu nome saiu na lista de aprovação e eu fingi estar feliz recebendo todas as ovadas na cabeça. Eu fingi gostar de beijar estranhos e de gummy com gosto de sabão. Eu sorri e era uma mistura de tinta, arrepios, sons e era pura sinestesia.
                                 Quando eu aprendi a dirigir e fui morar sozinha e tive o primeiro emprego, e as noites longas digitando e bocejando e redigitando, tudo isso entre goles de vinho e tragadas eventuais-cigarro-trago-agora-você-sabe. As pilulas brilhantes ainda faziam efeito, mas eu não fazia ideia de onde doía ainda. Foi quando eu parei de ler poesia e aderi aos livros do existencialismo e tudo parecia tão patético e eu me sentia como Camus tomando aquela xícara de café. O tempo parou de parar. O andar de mãos dadas parecia superficial. Os beijos não encaixavam. As dores não doíam. Os livros foram parando de fazer sentido. O doce foi amargando. O mundo girava e eu acompanhava como num disparate, um carrossel que eu sempre odiei e eu não achei o rumo como meu pai disse que eu acharia quando eu tinha sete anos e queria ser astronauta.
                                 Eu queria ter sete anos. E como eu queria ser astronauta. 

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