[Alarde]

[Leia ouvindo "Tigresa" - Maria Bethânia]
[Para os amores que saíram da minha vida sem fazer alarde, quando deveriam ter soado todos os alarmes. Eu teria feito um café e desejaria boa viagem]

            
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Jennifer Balkan - Master of Disiguise



              Abro os olhos e não estou em casa. A luz do sol entra pela varanda e ilumina a cama. Há uma estante pequena com alguns livros e discos, há uma vitrola em cima de uma mesinha perto do guarda-roupa. E eu lembro que ontem a noite, quando eu cheguei com Clara do nosso-quinto-encontro-perfeito ela correu para colocar Maria Bethânia. Eu ri quando clara imitou a cantora jogando os cabelos para frente. Clara é perfeita: engraçada, inteligente, bonita, ri das idiotices que falo e fez a noite de ontem ser mais que absolutamente perfeita. E eu me pergunto porque ela não está na cama comigo ainda dormindo, já que ela odeia acordar antes das dez e o relógio na parede creme dela diz que são oito horas. 
            Ontem fomos para aquele sebo-cafeteria. Ela falou dos livros preferidos dela e me fez comprar o Médico e o Monstro dizendo que era absolutamente a minha cara. Depois disso vimos um filme, uma animação que arrancou lágrimas de nós dois e depois fomos jantar. Voltamos andando para o seu apartamento e no caminho ela riu de algumas imitações que eu fiz. Contei da minha família e ela falou da dela. Ela me disse que tinha dois mil castelos no campo das ideias e eu falei da minha total falta de plano e de rumo. Ela segurou a minha mão com força e disse que tudo bem não ter planos e disse que ter castelos era inútil quando não se tinha a chave de nenhum. E eu disse como eu gostaria de vê-la dentro de seus castelos, nem que para isso tivesse que explodir muros e passar pela cavalaria e... a essa altura eu já estava bêbado e falava demais. E ela também estava porque tirou os saltos e continuou o caminho descalça. "Esses sapatos machucam" - Ela disse gargalhando quando finalmente chegamos ao prédio dela. E ela me convidou para subir. E foi tudo perfeito. O enlace dos braços, a dança de pernas, a respiração ritmada. O vestido azul que eu elogiei a noite inteira escorregando e caindo para longe. Foi quando eu descobri que Clara tinha mil olhares e era a tigresa de Caetano com suas íris cor de mel e com seus cabelos de caracóis. 
               O vestido azul ainda está no chão, ao lado das minhas roupas. Eu levanto da cama, me visto. Clara deve ter ido a padaria e eu vou aproveitar para ir embora em parte porque é o que eu faço quando amanhece e em parte porque Clara é leve e merece alguém que não saia de fininho pela manhã. Eu calço os sapatos e me lembro dos sapatos dela, saltos que a deixavam na minha altura e o quanto eu havia adorado o entusiasmo com o qual ela chegou batendo o salto e rodando para mostrar o vestido. Clara era tão leve que podia voar para onde bem entendesse e fundar seus castelos no ar se quisesse. Eu nunca tive planos. Nunca gostei de aproximações. Aquele era o máximo de intimidade que eu me permitia com alguém.
                 Eu abro a porta do quarto e escorrego para a sala, minha mão vai para a maçaneta da porta para eu sair. 
                "Quer levar café?" - Eu escuto uma voz atrás de mim. Clara dentro de um blusão, os cabelos desgrenhados, mas lindos. Ela não fora a padaria, afinal. Estava na cozinha e eu devia ter suspeitado. 
                      "O que?" 
                  "Café. Eu acabei de passar. Eu tenho copo descartável se quiser levar. É daqueles de papel"
                       "Não... Obrigado. É... Eu ia..." 
                   "Embora sem se despedir?" - Ela deu um sorriso - "Tudo bem, eu não ligo. Mas é educado falar. Não tem problema. Quer tentar?" 
                       "Falar o que?" 
                       "Clara" - Ela começou fazendo uma voz grossa - "Fomos divertidos mas não deu certo. Faz parte da vida e agora eu acho que tenho que ir embora". 
                        "Clara, você é..." 
                        "Maluca?" - Ela disse dando ombros e indo para o cozinha - "Eu só acho que é mais saudável viver assim. Agora traga a sua bunda até a cozinha, eu fiz tapioca. Você pode ir embora e não telefonar depois, dodói". 
                      A segui e tomamos café. Falamos sobre desimportâncias: amor, política, futebol. Ela arrancou duas gargalhadas com as péssimas imitações que só ela sabe fazer e eu fiz piadas. Lavei a louça, ela secou e guardou. Depois me deixou na porta. 
                         "Desculpe por isso" - Eu comecei. 
                         "Tudo bem" - Ela disse convencida - "Não teria dado certo. Você ronca". 
                         Ela sorriu mais uma vez e bateu a porta e eu fiquei estático por uns dois minutos. As vezes - só as vezes - é melhor ir embora fazendo alarde e anunciando festas de despedidas.
                         

                 

                   







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