[Ciclos]

 [Leia ouvindo Donna - The Lumineers]
[Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro 
Ergo as pálpebras e o tudo volta a nascer 
(acho que te criei no interior da minha mente)]


    Escuto um barulho fora do quarto. É só um gato. Ele adora me pregar peças enquanto vai e volta do banheiro para a sala, da sala para o quarto, do quarto pra cozinha. De novo e de novo e de novo. É quase como o ciclo que eu faço: da cama pra cozinha, da cozinha para a porta, da porta para o trabalho. Eu faço e refaço todo dia e no caminho, eu escuto a voz que me manda parar de agir como um gato como se eu tivesse mais oito vidas restantes para desperdiçar; me metendo em situações de risco pronta pra fugir delas e cair em pé quantas vezes forem necessárias.
    Lembro-me quando me prometeram o mundo embrulhado para presente. As mensalidades da escola cara, as parcelas pagas dos cursinhos preparatórios, as promessas de viagem, a vaga na federal, o estágio, o prêmio e todas as publicações. Os troféus na estante e os certificados na parede que pareciam um laudo médico que aprovavam o meu brilhantismo e atestavam que eu chegaria rápido onde eu quisesse. Quando me deram o mundo, eu rasguei o papel brilhante e laminado com sede. Sempre fui uma criança teimosa, cheia de pressa que acreditava que tudo precisava estar pronto até os 24. Fui uma adolescente meio Sylvia e meio Anne com fetiche por literatura e tendências dramáticas. Me vesti de pseudo-escritora e não fiz nada com mundo: o guardei ao lado dos troféus bem em frente ao certificados e eles não serviram como bilhetes dourados para as portas que eu queria se abrirem. 
    O barulho continua. O gato faz de propósito como se dissesse, levanta, inútil, ponha a minha ração. É o que eu faço: da cama para a cozinha, da cozinha para a porta, da porta para o trabalho. Antes de sair o gato mia de novo. Eu não o culpo pela forma como ele está vivendo. Nem ele me culparia. 

Comentários

Postagens mais visitadas