[A figueira]

                                         

[Leia ouvindo "O mundo é um Moinho" - Cazuza]




["Eu vi minha vida ramificando-se diante de mim como a figueira verde da história. Na ponta de cada galho, como um figo gordo e roxo, um futuro maravilhoso acenava e piscava. Um figo era um marido, um lar feliz e filhos, outro era uma poetisa famosa e consagrada, outro era uma professora brilhante, outro era a Europa, a África e a América do Sul, outro era Constantino e Sócrates e Átila e outros vários amantes com nomes exóticos e profissões excêntricas, outro ainda era uma campeã olímpica. E, acima de tais figos, havia muitos outros. Eu não conseguia prosseguir. Encontrei-me sentada na forquilha da figueira, morrendo de fome, só porque não conseguia optar entre um dos figos. Eu gostaria de devorar a todos, mas escolher um significava perder todos os outros. Talvez querer tudo signifique não querer nada. Então, enquanto eu permanecia sentada, incapaz de optar, os figos começaram a murchar e escurecer e, um por um, despencar aos meus pés". - A redoma de vidro.]

 

["No dia seguinte, quando estavam saindo de Betânia, Jesus teve fome. Vendo à distância uma figueira com folhas, foi ver se encontraria nela algum fruto. Aproximando-se dela, nada encontrou, a não ser folhas, porque não era tempo de figos. Então lhe disse: "Ninguém mais coma de seu fruto". E os seus discípulos ouviram-no dizer isso." - Marcos 11:12-14]

    

     Esses dias meu comprimido de ficar feliz caiu. Ele me acompanha já faz seis anos. Primeiro com 20mg, depois com 15mg, hoje com 10mg. E depois de tanto tempo, eu o deixei cair, rolar pelo chão. Procurei a felicidade encapsulada por uns demorados minutos.

     Tive um dia difícil, cheio de gritarias, cobranças e olhos atentos; ao mesmo tempo eu era invisível e me esquivava pelos corredores e fugia de espelhos e graças a Deus, porque eu nem posso mesmo encarar meu reflexo. 

    Hoje eu custei R$67,89 só por estar viva. Dinheiro da passagem, alimentação, comprimidos - e o salário ainda não caiu. Trabalhei. Corri. Voei. Cai. Não comi direito. Não bebi direito. Não respirei direito. E minhas costas doem. Mesmo assim, eu custei R$67.89 no dia de hoje. 

    Viver é caro e é um trabalho ingrato. O oxigênio me falta, meus ossos se corroem, meu comprimido escapa dos dedos e meu quarto ainda está bagunçado. Penso que não vou dormir o suficiente hoje. Penso que não tenho tempo para planejar o futuro e sonhar certos sonhos. Meu sono precisa ser rápido; em tela preta, sem muita surpresas. Penso que ainda não estou pronta para abandonar certos sonhos, mas que ainda sou medíocre em tudo que eu faço. 

    Eu acho o comprimido. Eu o assopro. engulo com dois dedos de água. Talvez amanhã eu custe R$65,83. Talvez eu pense em algo bonito antes de ir para o trabalho. Talvez eu sonhe colorido essa noite. 

    Eu vejo minha figueira, lembro dos figos que pairavam nela quando eu tinha 17. Eles eram lustrosos e eu poderia me esticar e escolher o que eu quisesse. Mas não decidi. A figueira morre de fome como eu; não dá mais frutos e, Jesus se me visse, me amaldiçoaria. Mas Sylvia me mandar comer. Talvez a vida não seja tão curta assim.


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