[Vitrais]

[Leia ouvindo "Lavínia" - Güido]

 ["Hoje, eu preciso ser amado com uma pressa oca. Não por desespero ou por complacência. Mas pela necessidade de sentir pele morna". - I. F, 2021]




    O que eu faço com os números? Te perguntei uma vez. Sei ordens de números de telefone, datas de aniversário, sei de idades que teriam hoje e de endereços antigos, inclusive o meu. Vendi a casa e uma velhinha sorridente mora lá agora, com seu cachorro de madame e plantas no quintal. E eu sei uma porção de coisas que eu poderia deletar da cabeça e um monte de outras que eu ainda uso. Lembro que aprendi a colocar canela no pó do café e esse era o cheiro mais confortante. Aprendi a bolar tabaco mesmo sem fumar. Lembro de gostos doces quase enjoativos de receitas que davam errado. Lembro de trejeitos, manias, gírias e de bandas estranhas. Sei o nome de uma porção delas e vez por outra elas tocam no meu spotify. Mas o que eu faço com os números?
    Você me perguntou se eu estava falando de namorados antigos e eu te lembrei de quando nos conhecemos. Nos conhecemos numa linha de exaustão. Um remix repetitivo, pelo qual demos graças a Deus e passamos madrugada adentro entre sorrisos meia boca e flertes automáticos. Você me disse que não procurava alguém fiel e feliz. Aceitava vícios de uma alma perfeitamente insatisfeita e desgostosa. Eu te respondi que não entendia como as pessoas ainda não dividiam os prazeres do corpo e os da alma, pois era perfeitamente possível e prático separar ambos. E você me chamou de maluca. E eu respondi que era. Que morria de medo de despedidas e que tinha um complexo de abandono fudido. 
    Você riu de mim e eu te contei de quando eu era criança. Eu fazia amizades como quem fecha um contrato: aperto de mão. Havia visto isso num filme e achei que trazia a seriedade que eu buscava nos amigos que eu fazia. Eu ainda acreditava na eternidade das pessoas e também em fadas. Acreditava que não havia tempo nem espaço capazes de separar duas almas que se gostavam. Cresci. Fazer amigos ficou mais natural. Sem apertos de mãos, sem promessas de durabilidade e com prazos. E eu aceitei qualquer explicação adulta que caiu no meu colo. Mas virei colecionadora.
    Você me disse que eu era apegada, que era mais uma acumuladora de tralha. Que não era só os números o problema. Eu ainda sabia dançar porque aquela pessoa me ensinou, ainda sabia de cor "Quem tem medo de Virgínia Woolf" e tinha manias herdadas, vícios de linguagem adquiridos. Mas me tranquilizou. "Não precisa fazer nada com os números", beijou minha testa e disse que eu era como um vitral colorido, muito, muito bom de se olhar. 












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