[O reflexo]

 [Leia ouvindo "Folhetim" - Sabrina Korgut]

["Vivi como uma hóspede com rancor,
Uma coisa em parte remendada, uma criança crescida.
Lembro-me que a minha mãe fez o seu melhor.
Levou-me a Boston e arranjou-me um novo
estilo de penteado.
O seu sorriso lembra o da sua mãe, o artista disse.
Não pareceu importar-me. Mandei pintar o meu retrato,
em vez disso". - Anne Sexton, A Imagem Dupla]

[Vania Comoretti]

["Esse cara, vez ou outra, me sorria de canto e dizia: "Você não está bem, não é, maluquinha?", e era como se eu estivesse nua. Desfigurada. Exposta em um pedestal, rodopiando-rodopiando, enquanto ele olhava minha carne com uma admiração cega. Não chegava a me incomodar. Estava acostumada a ser carne. E toda carne, além de ser fraca, perece." - V.C, 2020]


    A primeira vez que eu descobri a morte foi observando a minha avó. Os cabelos brancos que não acompanhei o surgir e o desaparecer. As rugas que foram se instalando primeiro nos cantos dos olhos, depois pelo queixo e em seguida pelos braços. As manchas senis que pareciam sugar toda a força dela. Por fim, as doenças próprias da idade que não dão aviso prévio. Não pedem a conta e não preparam caminho.
    Comecei a buscá-la. Não a vi por fora: os cabelos continuavam castanhos; as marcas do riso e do canto dos olhos já começavam a me sorrir pelo espelho. A procurei por dentro. As mortes cotidianas, o avanço do tempo, as consultas semestrais com coletas de sangue. Pedi raio-X para ver se ela já havia começado a destruir meus ossos. Passei o dia inteiro numa ultrassonografia para ver se havia massas em meus órgãos internos. Esperei por uma eletroencefalografia. Queria ver se meu cérebro brilhava, se poderiam criar alguma hipótese médica e me dar mais duas pílulas por dia. Eu ouvi pacientemente. "Normal". "Sem alterações". "Seu nível de vitamina D está baixo, mas nada para se preocupar, tome mais sol". Sorri de canto. Vida longa, mas tempo insuficiente. Me falta tempo pra amar. Me falta tempo para sorrir. Me falta tempo para me esticar e alcançar uma estrela. E minha pressa é desesperadora. "A vida é curta, Maggie Smith, e às vezes, em segredo, eu encurto a minha de mil maneiras deliciosamente imprudentes, mas isso é um segredo que só conto a você". 
    Eu costumava ver as fotos da minha avó com um interesse mudo. A moça das fotos preto e branco com os cabelos pretos e lisos, batiam na bunda e ela era o padrão de beleza da época. O corpo esbelto. A pele impecável e maciça. Não havia rugas. Eu dava aquele rosto o protagonismo das histórias que ela me contava. O dia da igreja, quando fez simpatia para chover. A história do vestido curto, que arranca olhadelas e assobios, aos quais ela reagia com palavrões e com o dedo do meio, porque ela sempre soube que sua carne pertencia somente a ela e a mais ninguém, mesmo que os outros pensassem o contrário. Ela era uma espécie de Bette Davis com olhos tristes, mas altivos, rodopiando enquanto a música tocava. Agradecendo a plateia sob o som de aplausos enquanto as cortinas de fechavam.
    Entre um trago e outro, enquanto encurto a vida de uma maneira deliciosa, me olho no espelho com um fascínio mudo procurando os primeiros sinais da morte. Um cabelo branco que surgiu por estresse. Algumas rugas na testa. Dessa vez quero acompanhar tudo porque quero agradecer ao público quando as minhas cortinas se fecharem.

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