[Hospedaria]

[Leia ouvindo "Hard Feelings" - Lorde]

["Alguém está vindo visitar, 
É algo extraordinário,
O passado dessa pessoa, seu presente e seu futuro 
Estão todos vindo com elas. 
Porque é frágil, ela pode ter sido quebrada antes,
Esse coração dela está chegando;
Para seu coração, que caminho há?"]

(Anne Herrero)

    Troquei os lençóis. Abri a janela. Deixei o quarto arejar. Esfreguei o chão, acendi uma vela: essência de baunilha. Os outros hóspedes deixaram uma trilha que não pôde ser limpa. Pintei as paredes ao invés disso de um amarelo desbotado. Bebi um vinho entre os intervalos. Me lembrei dos cabelos cacheados, o cheiro de menta. Já esqueceram um maço de cigarro e alguns vícios de linguagem na mesinha de cabeceira. Já deixaram um livro grafado, uma dedicatória na contracapa, mas já faz algum tempo.
    Hóspedes são sempre desatentos. A primeira vez que um veio, deixou alguns discos espalhados na sala, um caos no quarto, um casaco pendurado. Ele voltou para buscar e se despediu com um aperto de mão e algumas palavras graciosas. Não deixou saudades porque foi em boa hora. Lembro de um que deu uma festa lá pelas tantas da madrugada. E eu me lembro de dançar na mesinha de centro ouvindo música alta. Ele foi embora no dia seguinte, porque não tinha bagagem e era o dia de se alistar no exército; depois de alguns anos, ele me buscou em casa e já não dançava mais e nem ouvia música alta e me emprestou sua gandola antes de ir. Ofereci um travesseiro, mas ele estava atrasado demais para ficar e já queria seguir viagem.
    Me lembro daquele hóspede que era como Sal Paradise em On The Road. Ele prometeu não ficar muito tempo, ficou pouco menos de um ano e precisei enxotá-lo, quase que aos berros porque sentia falta da solidão. Nos abraçamos na porta com um choro desconfiado, ele levou uma das minhas malas por não haver trazido nenhuma com ele e hoje só trocamos cartas curtas com cumprimentos breves.
    Já houve noites insones que um hóspede tocou para que eu dormisse. Dedilhados leves no piano simples da sala, cafunés corridos sem muita maldade, um beijo leve como o pouso de uma borboleta. A chegada e a despedida sempre são as mais simples.
    Amar deve ser assim, criar um ritual em visitas esporádicas, preparar caminho, fazer a cama. Um cumprimento simples, talvez aperto de mãos que evoluem para um abraço como quem fecha um contrato de inquilino-proprietário. O corre-corre para se acomodar, desfazer as malas, se acostumar com a rotina, horários e com a cama. Aprender os vícios, trejeitos, defeitos, ajudar a cozinhar, limpar, enjoar-se. Refazer as malas com a justificativa do adeus inevitável. O abraço doloroso, o estranhamento de se ter uma casa vazia. Se troca lençóis, aspira o pó, troca-se os cômodos de lugar. Se refaz a rotina, coloca-se um anúncio. Espera. E começa tudo de novo. Um dia dá certo. 

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