[Varanda]

 [Leia ouvindo: "Achilles come down" - Gang of Youths]

["Viver é muito sofrido mesmo, não é? Mesmo assim a gente tem vontade de viver... né!?" - What a wonderful world, Inio Asano]


[Reisha Perlmutter]


[Daqui de cima tudo é mais bonito. O cheiro da fumaça de cigarro não vai impregnar na minha roupa. Não vou tirar estranhos para dançar e não vou vomitar na saída do banheiro com mãos gentis nas minhas costas. Aqui é mais quente. Daqui de cima, o vento frio não me alcança e não ameaça cortar meus dedos fora. Daqui de cima eu posso me ver como um pássaro engaiolado e sem asas que nunca voarão para perto do sol.]


    Quando eu era mais nova, eu ouvia um pontinho agudo no meu corpo. Ele me chamava para voar durante a noite. Eu senti meus pulmões se encherem. Sentia cheiro de terra molhada, bolo assando, café coado. Ouvia um grilo solitário. Ouvia dedos tamborilando. Percebia uma bailarina segurando o peso do corpo todo em alguns dedos do pé. Eu suspirava e pensava: "viver deve ser isso, ser feliz deve ser isso". 
    Eu ainda tinha a idade que as crianças tinham quando começamos a mentir para elas. Ouvia as palavras "promissora", "acima da média", "inteligente" em todas as reuniões de pais. Somos todos assim até nos tornarmos medíocres. Até deixarmos os sonhos para as pessoas que podem de fato realizá-los. O que não denota tanto esforço assim, mas tempo e dinheiro. Nessa época, eles queriam de nós grandes sonhos e grandes realizações. Lembro dessa professora, que sorriu como que numa confidência otimista, querendo afastar todos os nossos pesadelos para longe: "as suas asas devem ser maiores do que o seu ninho. Se puder voar, vai embora para bem alto e para bem longe". Achei bonito na época, até conhecer Ícaro. 
       Ícaro é aquele cara, das asas mecânicas feitas pelo pai. Ele foge do rei Minos. Ele voa alto demais. Perto demais do Sol. As asas derretem, se desfazem no ar. Ícaro cai. As penas são encontradas na água. Ícaro morre afogado. Na mitologia - e na vida real - não há espaço para tentativa e erro. Um pouco de pessimismo diário e um riso de criança para contrabalancear, é o que me faz levantar todo dia e encarar a vida com uma cara boa.
        Quando eu era criança, não tinha medo da minha voz. Não me desculpava a cada ação impensada. Eu tinha asas enormes e voava sem medo de cair. A vista era bonita. As pessoas e os medos, pequenos demais. Os monstros não me assustavam. Criava meu próprio universo feito deusa. Até eu voar perto demais do Sol. 
       Da minha varanda dá para ver as crianças brincando. Todas se acham promissoras. Todas se veem com um futuro brilhante. Querem ser astronautas, feiticeiras, jogadoras. Criam herois de um mundo caduco e sobem no palco como protagonistas. Gosto de ver as crianças brincarem como se tivessem todo tempo do mundo, porque na verdade, elas realmente são donas do tempo. Mesmo fazendo pouco tempo, ouso dizer que não nos lembramos mais da sensação. Da minha varanda, também vejo os pais. No telefone, fazendo cálculos. Fumando um ou dois cigarros enquanto xingam o patrão. Brigando com o marido, de audiência marcada. E as crianças não fazem ideia de como o mundo pode ser horrível. Mas minto. Algumas sabem. Algumas escutam sussurros pela madrugada. Outras percebem um olhar ou dois. As crianças têm pesadelos. Algumas voam perto demais do Sol, se perdem tentando ir à Terra do Nunca e se caem no mar. Ainda assim, a vista é bonita. 
          
        Queria poder contar a elas. Esse mundo é terrível. terrível e maravilhoso 

Comentários

  1. Adorei! Muito forte o texto. As reflexões lembram um pouco o livro "Aos 7 e aos 40" de João Anzanello Carrascoza.

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