[Raízes]

[Leia ouvindo "Where Do The Children Play - Cat Stevens]

["A vida é curta, mas isso eu não conto às minhas filhas.
A vida é curta, e a minha eu encurtei com mil maneiras deliciosas, imprudentes,
mil maneiras deliciosamente imprudentes que não contarei às minhas filhas. 
O mundo é no mínimo cinquenta por cento terrível,
 e olhe essa estimativa é conservadora, embora eu não conte às minhas filhas.
Para cada passarinho há uma pedra estilingada num passarinho.
Para cada criança amada, uma criança despedaçada, ensacada, submersa num lago. 
A vida é curta e pelo menos metade do mundo é horrível,
 e para cada gentil desconhecido, há um que te destroçaria,
 mas isso eu não conto às minhas filhas. 
Tento vender-lhes o mundo.
 Qualquer corretor de imóveis hábil, ao te abrir a porta de uma espelunca, tagarela sobre
os alicerces: esse lugar poderia ser lindo, né não?
Você poderia fazer daqui um lugar maravilhoso"]

[Anne Herrero]

    Não lembro quando a vida virou uma rocha a ser carregada rumo ao topo da montanha. Ou quando virou uma águia que faz visitas durante o dia. Ela promete comer um pedacinho por vez com gentileza, e promete que a noite te deixará em paz. Há várias maneiras de sentir dor e há várias maneiras de se sentir despedaçado. Aprendo uma diferente a cada dia entre as oscilações de humor e o riso frouxo. As pitadas de alívio cômico que vem no formato de um garotinho que chuta uma bola para você. Acabo me perdendo no personagem quando me encanto com o garotinho. 
     As coisas se afunilam a medida que o tempo passa. A liberdade some. As raízes se criam. Fica mais difícil de ir embora de mala e cuia. Lembro-me que em uma dessas conversas em mesas de bar, ouvi alguém dizer: "eu já estava velho demais para me mudar para a França". As raízes se fincam na terra e arrebentam o concreto. Fica cada vez mais difícil de ir embora. Lembro de ouvir um estranho no ônibus: "eu já tinha emprego, namorada, um filho a caminho". As coisas se afunilam. A vida fica terrivelmente confortável. Lembro que ouvi quando estava em um avião de volta a Brasília: "eu não quero que nada me prenda nessa cidade. Quando eu puder eu vou sair o mais rápido possível daqui". E era isso que a gente deveria fazer mesmo, eu pensei. 
     Mas o conforto não deixa. Eu sou uma casa confortável, eu pensei nesse dia, um carpete que aceita pés descalços. Uma mesinha com cinzeiro divertido. Um armário que tem ossos escondidos, mas jogos de tabuleiro também. Há poucas traças. Há poeira em alguns dos meus cantos poucos visitados, mas não faz mal. Sempre há um cheiro doce de bolo assando, uma música suave tocando. Eu sou uma casa quase sempre vazia. Recebo todos os hóspedes que posso. Não seguro ninguém, mesmo que queiram criar raízes e cochilar no meu peito nas tardes preguiçosas de domingo. É que a vida é um trabalho inútil de cada dia, meu bem, e eu sou uma zona de conforto, um lugar para desabrigados e refugiados. Não fui feita para ser moradia de ninguém, ou viraria a rocha na montanha. A águia comedora de fígado - um pedacinho por vez. Seria um trabalho inútil de cada dia e obrigaria a faxinar. A vida é curta, o mundo é horrível e eu sou um alívio cômico. Uma casa confortável. Onde não há despertadores. Onde as bocas se alcançam. Os dedos se dançam. Os corpos se beijam. E eu não faço um alarde com isso. Eu sou uma casa quase vazia. E as pessoas podem superestimar a falta que eu posso fazer. Mas isso não me impede de enxotá-las do sofá. Depois disso, as pessoas saem como mudas, sem raízes fincadas e percebem o quanto eu posso ser esquecível, superável. Não me importo com isso. Prefiro ser uma casa de hóspedes - vazia e confortável - do que ser um fantasma vagando na charneca. Assombrando pessoas que não precisam se lembrar de mim. 

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