[Memória]

[Leia ouvindo "Solidão de Volta" - Terno rei]
 [Um dia eu ouvi dizer que eventualmente viveríamos só de memórias. Não faço ideia de onde eu ouvi/li isso, mas esses dias essa frase martelou na minha cabeça e ela nunca fez tanto sentido]


[Katherine Stone]




    Em outros tempos era mais fácil se apaixonar. Era mais fácil encontrar seus próprios pontos de ruptura, se desfazer em migalhas e se remontar a imagem e semelhança daquele estranho cuja boca você beijou. Era mais fácil fingir que gostava de álcool e que o cheiro de cigarro não incomodava tanto. Até escrever era mais fácil se ignorássemos Rilke e suas cartas para o poeta amador e simplesmente escrevêssemos sobre a arte de amar, tal qual Ovídio - que não precisou de dicas pra se eternizar.
    Esses dias encontrei uma foto e foi como se ela ganhasse vida. Senti o cheiro de café passado, revi os quadros do museu e me apaixonei na porta da biblioteca, narizes se tocando, carinhos de dedo, interrupções e piadas sobre aquele livro que eu nem cheguei a ler, porque nós, jovens, podíamos fazer tudo. Podíamos. 
    Me lembrei do tumulto da noite seguinte, a música martelando, a risada frouxa e a ressaca amorosa da madrugada. Também tiramos fotos naquele dia e eu as guardei dentro de uma caixa com as fotos do museu. Se eu fechar os olhos, suas cores ganham vida e eu volto a sentir os cheiros e o gosto daquela noite no fundo da garganta. Mesmo que agora eu esteja martelando os dedos no teclado tentando escrever um maldito ensaio sobre a memória.
    "Um dia viveremos só de memórias", eu ouvi dizer e se eu fechar os olhos, lembro da primeira vez que eu fui a praia e posso sentir a espuma nos meus pés. Mas eu não lembro qual roupa eu usava ou o que passava no rádio naquele dia, porque a memória também morre, apesar da descarga de sobrevida que em corrente elétrica a memória nos dá. É quase como uma massagem cardíaca. Eu nunca pensei que eu viveria de memórias tão cedo trancada dentro de casa enquanto o mundo se desmonta. A saudade é consequência da memória e é ela quem me obriga a pegar o telefone para te ligar e lembrar da cor da sua voz. Ou simplesmente escrever um texto sem pé nem cabeça. E a saudade, as vezes, vira uma série de perdas irreparáveis.
    E eu posso passar a tarde inteira enumerando as novas perdas irreparáveis que eu pensei: o bolo que a minha avó assava aos sábados, o suco daquela loja que fechou, a música que tocou naquele dia cuja o nome eu nunca soube, o cheiro da fazenda onde eu vi vagalumes pela primeira vez, a rota que eu fazia ao voltar para casa. 
    E é a memória - sempre a memória - que me faz voltar esses dois ou três anos no tempo. Quando o mundo era completamente diferente, e Deus ou o Diabo com seus inúmeros disfarces, pregavam peças mais brandas na humanidade. As vezes me pergunto se a memória me deu sobrevida na sua cabeça. E se você tem uma cópia das nossas fotos. Me pergunto, se daqui a um ou dois anos, eu vou virar poema ou crônica ou mesmo uma história engraçada sobre quadros de museu, piadas ruins sobre o livro que não lemos, a noitada e a volta para casa. Eu te prometo te desfibrilar de tempos em tempos, se você me prometer o mesmo.  

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