[Dançando]

 [Leia ouvindo "Don't watch me dancing" - Little Joy]

[Jennifer Balkan]

    [Quando eu te conhecia eu só era metade mulher. Ainda estava tentando descobrir o que a outra metade era. Se era humano ou se era animal. Tentava descobrir do que era feita. Se de plástico ou de carne. E você me ensinou. Me ensinou que eu era parte animal quando despertou os instintos que eu não sabia que tinha. Me mostrou que eu era de carne quando se desenhou em mim e fez com que eu me sentisse macia e pulsante e de quebra sangrasse. Aprendi a ser a minha parte inteira.]

    Eu lembro de quando eu te vi dançando. E depois da sua dança perfeita e embolada eu não conseguia te olhar nos olhos, mas conseguia sorrir depois de te dar um beijo de canto e acho que eu nunca te amei tanto. Você era a perfeição inalcançável e nada podia ser melhor que nós dois. Eu já sabia o que ser homem significava e sabia que humano era só uma espécie animal, você sabe bem disso, eu nunca acreditei em Adão ou em alma. Sabia que era feito de carne, de sangue e que as minhas entranhas se mexiam dentro de mim conforme seus passos de balé. Ainda assim eu não conseguia te encarar. Tinha medo de que você não fosse tão humano quanto eu. Pensava que meu olhar pudesse te quebrar. Pensava que você poderia desenterrar todos os meus pecados e eu estaria atado em uma cruz, mesmo que não acreditasse em redenção ou sacrifício. 

    Você parecia ser de vidro. Ou de cristal. Ás vezes parecia ser de plástico. Parecia ser feita de qualquer coisa, menos de carne. A sua perfeição doía. Era um constante lembrete das minhas imperfeições. Era a trave no meu olho, como naquele versículo que você me fez decorar. Eu lembrava só da sua dança perfeita e embolada e só podia pensar que estava te amando. Eu pensava várias vezes em como eu poderia descobrir a sua anatomia. Se você se cortaria como qualquer um com uma roca de fiar ou mesmo com um pedaço de papel.

    Até que finalmente em um dia qualquer, você sangrou. Se rasgou dançando descalça na chuva cobrindo a cabeça com um guarda-chuva furado. E eu finalmente pude te beijar. Você era inteira e éramos animais. E você me disse aos sussurros enquanto esperávamos o ônibus na chuva, que não sabia mais dançar embolado numa perfeição quase estática. Aí eu soube. Soube que eu nunca mais te amaria como da primeira vez em que eu te vi dançando.