[Instante]



[Leia Ouvindo "2004" - Anthony Amorim]
[Se "um dia viveremos só de histórias" espero conservar boas contações na ponta da língua]   

(Carmen Mansilla)

    Ouvi certa vez que não podemos confiar totalmente na nossa memória. Esquecemos das coisas muito fácil e o nosso cérebro, aparentemente, não gosta de pontas soltas ou lacunas em branco. Ele acaba preenchendo de qualquer jeito.
    Queria poder confiar na minha memória. Dessa forma eu não teria que recriar tantas cenas e trejeitos sozinha. Queria me lembrar da cor da blusa, do ponto em que descemos, de que dia da semana chuvoso era aquele. Quando eu te disse que estava tentando guardar aquele momento, você me disse que era impossível. Que um dia, eventualmente, você viraria uma fotografia amassada sem um lugar fixo no álbum, como aquelas fotos dispersas que não têm um lugar certo. Lembro que uma vez perguntei  para a minha avó ao ver uma foto solta: "quem é esse?" e não obtive uma resposta certa, só um breve sorriso e uma inspiração leve. Você disse que chegaria um dia em que eu não lembraria da cor da sua blusa ou do seu poema preferido, ou que descemos naquela estação no dia tal do mês tal e estava chovendo. E eu soube que já estávamos nos despedindo, que você estava se afastando lentamente para não me assustar, como se estivesse morrendo devagar, quase adormecendo. E assim eu me esqueceria. E eu teria que te reinventar. 
    E esses dias eu abri o livro que você me deu de presente procurando o poema que eu não lembrava que não estava naquela coletânea. Folheei e me lembrei que você escreveu o maldito poema na última página em branco do livro, já que aquele poema específico não podia faltar naquele presente.
    Era um péssimo poema, isso nós sempre soubemos. Soubemos desde a primeira vez em que saímos e lemos um para o outro. E você leu Vinícius de Moraes em voz alta. Eu li Drummond e Caio Fernando de Abreu. 
    Comemos amora do pé e você me tirou para dançar porque você estava num momento raro de pura felicidade estática. E você foi comigo esperar meu ônibus. E por mais que eu me esforce, eu não consigo me lembrar de qual era a parada. Ou sobre o que estávamos conversando. Aposto que você também não se lembra. Nós poderíamos recorrer a memória falsa e escolher um desfecho para essa tarde. Eu pintaria nossas roupas com as minhas cores preferidas, daria novos nomes para nós, escolheria uma nova parada, uma novo ônibus e recontaria essa história com um final diferente. 

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