[Movediça]


[Leia Ouvindo Apocalypse - Cigarettes After Sex]

["Para mim, o presente é para sempre, e o eterno está sempre mudando, fluindo, se dissolvendo. Este segundo é vida. E quando passa, morre. Mas você não pode recomeçar a cada novo segundo. Tem de julgar a partir do que já está morto."]

Carmen Mansilla

"Sou o presente, mas também passarei", ela correu os olhos rapidamente pelo papel e virou a página do livro com violência. Ela pensava em álcool e isolamento e morte. Desligou o noticiário, enviou mais alguns emails para o pessoal do trabalho, pagou os boletos que insistiam em chegar. Eles não sabem? Ela pensou, não sabem que o mundo inteiro parou? Mas ela pagou os boletos mesmo assim e pensou em passar um café e em reorganizar seus livros pela milésima vez na semana. O gato preguiçoso ronronava no sofá. Tudo estava igual para ele. A ração era servida de manhã, de tarde e a noite. a caixinha de areia aparecia milagrosamente limpa. E a moribunda com quem ele dividia a casa se arrastava pelos cômodos enrolada no roupão e ele só precisava checar todas as manhãs se ela estava viva ainda. Alguns dias ela se esquecia de tomar banho, algumas vezes trocava a noite pelo dia e fodia com todos os emails. Os emails. Os malditos emails. Nunca paravam de chegar. Era o chefe. Não. Eram os colegas de trabalho. Era o orientador. Eram propagandas. Sim, as malditas propagandas. Ela parou de ligar o jornal e desativou o twitter e ria sempre que via uma musa fitness fazendo yoga no instagram. Ela o desinstalou também e começou a ver o sol indo embora todos os dias enquanto pedia comida. Comia sozinha e pensava em beber. Ela já havia acabado com todo o estoque de bebida. Ela precisaria ir até o mercado comprar vinho barato. Mas ela também não tinha roupas limpas. Precisava lavar as roupas antes de sair. Isso. Ela precisava se esgueirar pela varanda onde ela acumulava as roupas de um mês atrás. Ela cheirou o roupão que usava. Precisaria lavá-lo também. Mas não naquele dia. A cozinha também estava podre. Quando a louça toda acumulou e a comida acabou, ela deu graças a Deus pelo delivery. Precisava fazer compras. Precisava lavar a louça, lavar as roupas, fazer compras e comprar bebida. Mas não nessa ordem. A cafeteira ainda estava limpa e ainda tinha café. Pelo menos o café. Ela esboçou um sorriso e quando seu cabelo se soltou oleoso e quebradiço, ela percebeu que ele não parara de crescer. Ela lembrava de ter ouvido em algum lugar. Os cabelos e as unhas nunca param de crescer, mesmo quando você morre. Mas as unhas dela pararam de crescer. Se cansaram de ser roídas até o talo e deixaram os dedos desnudos sangrarem em paz. Eles doíam quando ela digitava. Precisava digitar todos os dias. Os malditos emails. Eles ainda precisavam ser respondidos. Ela respirou fundo. Voltou a página do livro. "O momento culminante, o relâmpago fulgurante, chega e some, contínua areia movediça. E eu não quero morrer".




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