[Ipês]

[Leia Ouvindo "Teen Idle" - Marina & The Diamonds]
[É um texto caótico, saudosista e com uma pitada de culpa e automatismo.]


["A morte era mais simples do que eu pensara.
A vida, dia a dia, fez-te boa e consumada,
deixei que as bruxas me levassem a alma culpada.
Fingi que estava morta
até que os homens brancos bombearam o veneno cá para fora,
deixando-me indefesa e lavada através do palavreado
de caixas falantes e da cama eléctrica.
Ri-me ao ver o ferro privado daquele hotel.
Hoje as folhas amarelas
voam à toa. Perguntas-me para onde vão. Acho
que o «hoje» acredita em si, ou então decai."]



[Katie O'Hagan]

           Eu não me lembro da cor da sua voz. Eu não tenho certeza se era num tom de verde vivaz ou de um tímido amarelo queimado. E espero que me perdoe por não lembrar direito de como ela soava, espero que eu ainda te ouça cantarolando alguma música boba para saber se é verde ou amarelo. Talvez seja azul. Eu gostaria de me lembrar de como seus olhos dançavam. Eu lembro que você me fitou com um olhar de confusão um dia desses, quando estávamos sentados ao ar livre. Eu lia um livro bobo e você estudava alguma coisa de cálculo e era época do Ipê Amarelo e você sorriu ao ver que estávamos deitados numa cama amarelada sobre a grama. O tempo pareceu congelar. 
        E eu lembro quando lemos Machado juntos. Foi quando eu fui liberada da psiquiatra com tapinhas nas costas e todo mundo ficou orgulhoso de mim. E você disse que eu tinha sorte. Me presenteou com três piadas e uma gargalhada assimétrica, mas verdadeira. Naquela noite eu fui para o bar e o nosso amigo não parava de encher meu copo e eu voltei flutuando pelo metrô tentando acompanhar meu próprios pés. E você havia ficado em casa enrolado em algumas cobertas pois a época de calor ainda não tinha chegado e você preferia aquecer os pés em suas meias felpudas ao invés de levar a bunda para o vento gelado lá de fora. 
             Eu não me lembro da anatomia exata do seu sorriso. Não sei se era torto ou meio de canto, mas eu lembro que você costumava sentar na última cadeira durante as aulas. Nos comunicávamos telepaticamente já que eu sentava pelas cadeiras da frente. Era a época que eu descobri que éramos parte do mesmo substrato, porque você começou a ficar melancólico e me mostrou aquela banda nova que você tanto gostava. 
             E eu me lembro de quando você foi embora. A época dos Ipês Amarelos havia acabado e só ficamos com árvores sem graça perto de nós. O tempo era seco e não havia mais motivos para usar meias felpudas porque a estação quente acabara de começar. Foi quando a gente brigou. Eu gritei com você por você ter me privado. Ter me privado da sua risada, das suas piadas, da sua companhia pelo metrô, de algumas cervejas no Moe's. E você não gritou de volta. Ficou estático por alguns segundos, respirou fundo, olhou mais uma vez as árvores e partiu para algum lugar sem bagagem. Provavelmente um lugar com Ipês coloridos e bem cheios, aqueles que fazem aquela sombra enorme e acabam colorindo o chão. 

Comentários

Postagens mais visitadas