[Acumuladores]

[Leia Ouvindo "Lady Lie" - Rainbow Kitten Surprise]
[Se o destino existe e ele realmente bordou meu futuro na palma da minha mão; faço questão de puxar a linha e refazer o bordado.]

             Lembro de como você abalava mundos piscando esses seus olhos embaixo de cílios quase que invisíveis sob a luz do sol, tão leves quanto asas de borboletas capazes de provocar grandes furacões e catástrofes piores ainda. Eu gotejava das suas mãos firmes como água, escapando lentamente pelos seus dedos. E você ainda esperava para me recolher do chão usando sua camiseta laranja para secar tudo que me tinha. Eu lembro de ter rido alto para você e de ter ouvido a sua gargalhada ecoando-ecoando-ecoando enquanto combinávamos incêndios e abalos sísmicos. Éramos donos do nosso próprio universo, agentes do nosso próprio caos e gostávamos disso. Eu gostava de ser assim com você, quando corríamos pelos quatro cantos do mundo rumo a-qualquer-lugar-não-importa-onde; afinal, acabaríamos no metrô de novo. Dando voltas e mais voltas pelos trilhos e acabaríamos nos pegando em um canto qualquer, onde eu seria tão você quanto você seria eu. Nos misturaríamos, você nessa sua cor laranja avermelhada, quase que como o pôr do sol e eu com a minha cor lilás, quase que como o céu pouco antes de ficar completamente escuro. Nos completávamos e nos pintávamos um do outro. 
                Eu colecionei as suas histórias. As nossas histórias, desde as suas histórias de bêbado, como quando você correu dos seus próprios pés ao perder seus sapatos no parque; até as minhas poesias sobre os nossos nós; sobre como nos costuramos criando um tecido único e  nos embolamos e depois acabamos nos desfazendo e voltando a ser linhas únicas. Eu guardei todas dentro de uma gaveta.
                 E esses dias, remexendo nas minhas velhas coleções de botões, eu acabei te achando e talvez por isso eu esteja tão melancólica e saudosista e clichê. Te tirei de uma caixa como quem descobre um tesouro e te reli. Te observei. Vi teus traços. Te ladrilhei e acabei te jogando fora. Tenho acumulado tanta tralha e tanta saudade que tudo foge da minha perspectiva. Perco meus pontos de fuga e toda a minha obra se perde. Estou prestes a expurgar a força qualquer coisa que eu encontre pelo caminho. Estou cansada de ser acumuladora e quando eu falei para o meu psicólogo sobre ser uma acumuladora, ele me sugeriu algumas sacolas plásticas, caixas e uma caminhonete. Mas acontece que coisas velhas têm história e história tem fantasmas e vice versa. Então falei para ele que as vezes sentia que precisava mesmo era de um exorcista, porque eu ainda ouço algumas vozes que vêm assombrando o meu porão, e elas se parecem com você e com seus olhos de borboleta, onde eu tenho tanto medo de perder e tanto medo de amar. E quando eu falo de ter medo de amar, eu digo medo de amar certo as pessoas erradas e amar errado as pessoas certas e acabar usando todo meu arsenal de palavras falando sobre isso, porque há tantas formas de se descrever um coração partido, mas eu sinto, de alguma forma, que todas as minhas palavras são finitas e que as minhas metáforas, cedo ou tarde, vão se esvair e eu não vou conseguir mais te dizer o quanto eu estou com saudades por meio de longos textos melodramáticos que mais parecem canções de amigo sem eira e nem beira. 
                    A primeira vez que te encontrei, acreditei que te guardaria para todo o sempre. Pensei que você era daquelas coisas essenciais que não podem faltar dentro da gente e a cada vez que eu te ligava para saber se você já havia tomado seu remédio das duas, eu me perguntava se eu era assim para você também. Mas eu tive que te guardar numa caixa cheia de botões velhos, daqueles que guardamos por apego e que nunca usamos porque não combina com nada, mas que já fez parte de um lindo casaco de fio. Suspeito que você nem tenha me guardado. Deve ter me jogado pela janela junto com a coleção de livros do Capote que eu deixei na sua casa. É difícil aceitar que somos tão descartáveis e tão substituíveis. Eu não vou ser a única. Você não vai ser único. Eu sei que vamos nos apaixonar mais mil vezes, mas nunca mais um pelo outro. Pensar assim, faz com que seja mais fácil jogar livros ao vento. E acredito que foi exatamente o que você fez. 
                       É, meu bem, a gente vai levando a vida assim, com a barriga; acumuladores fazendo o que pode, guardando amores dentro de caixas e torcendo para precisar reabri-las. 

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